paixão sozinha

Tinha uma paixão que vivia sozinha: nunca encontrava outra no seu caminho. Quer dizer: encontrava, mas nunca a sua.

Via outras, circulantes, apaixonadas e apaixonantes, que nem a viam.

Sempre que esquecia a crueza da sozinhez e desibernava, na sua trilha só vinham cactos, lasanhas frias e pedras que desfaleciam (pedra, quando desfalece, vira pó).

Desertos de paixões suas, desmultidões emaranhadas de areia, avessos e inversos do que nela pulsava.

E paixão sempre sozinha arrefece: persistência não lhe é atributo. Então ela esmoreceu, por um tempo, empriguiçou, embrulhou-se no sofá. Achou que não era pra ser, que talvez fosse invisível, sem cheiro, ou que de fato não valia a pena.

Desistiu-se, hipnotizada do desassosego de não ser, embrigada de vazio.

E assim ficou, parada, séculos. Seus cabelos branquearam. Seus olhos fizeram rugas. Perdeu muitas lembranças. Quase se esqueceu de que era.

Mas um dia (nada nem ninguém dorme pra sempre) despertou. Lavou os olhos, recolheu seu segredo, e saiu pro mundo, incontinenti de si.

Alvoroçou-se de ver paixões em volta que, apaixonáveis, acenavam-lhe.

Mas nada: nada da sua paixão. Nada de acontecer.

Talvez não fosse paixão entre os seus: fosse pavão, jabuti, ou outro bicho qualquer.

Protagonista e protagonante da sua história, nada vivia, antifática.

O desachego da palavra rasa, do elogio que esvai, da paixão visita que não fica, que não volta.

Aí, eletrificada e explodente, feliz por se ser, triste pela falta do abraço do plano no destino, sofrendo por não ser pra outra, por a outra não ser pra si, desencontrada nesse mundo cheio de paixões achadas e contadas, a paixão sentou e chorou, cansada de ser sozinha.

Quando a lágrima toda acabou, estava tudo alagado: seu mundo desértico virou mar.

E ela lá, afundada, sem afogar. Então a paixão entendeu que não tinha jeito: era paixão mesmo. Tinha guelras de paixão.

Ainda que sem a paixão sua, sozinha, sem afago, no desaconchego. Nadou devagarinho.