Incurável acanhado

Imperceptível minha estadia é registrada pelos dias despojados em números riscados no calendário. Sempre uma promessa supérflua de que o amanhã furta o brilho de ontens desprovidos de significado, uma esperança que abriga a exaustão de caminhar relutante pelas horas e se encontrar perdido num lugar inalcançável por qualquer civilização.

Deito no conforto de um espaço vazio, inabitável e impossível de romper a desolação que paira na certeza de que não há melhor esconderijo, não há mais para onde ir, não há outra escolha senão encolher e camuflar na pigmentação fraca da aquarela empobrecida pintada nas linhas e dimensões tortas e explícitas de imperfeição.

Debaixo de um manto nublado, um silêncio celestial que se estende a ser uma rima de minha poesia, um lar para onde miro e me incluo em suas metáforas e interpreto a mim como parte de sua arte abstrata, hostil e eterna por entre a inspiração que tece meu ser que complementa sua metade em falta.

Imóvel e congelado, uma dominância gélida percorrendo a flor murcha da pele, punindo o corpo febril e drenando o sono e a disposição numa fome parasítica. Impulsionando-me a abraçar a maciez dos travesseiros e envolver-me na proteção de estar inteiramente coberto pelo tecido familiar de um velho lençol, reivindicando uma posição para viver quietamente pela tarde de nuvens carregadas.

Atento pelas possíveis novas mensagens, certificando a realidade do momento, rabiscando versos como uma expressão rupestre. Calado pelas recentes feridas que não possuem voz para serem confessadas ou gritadas no ápice de suas dores. Incurável sou a permanecer com os segredos que consomem e tomam o volante de minha noção, de meu tempo. Desgastado e abandonado numa tardia, envelhecida noite, escrevendo para que isto não seja esquecido.

Espreitando lentamente as ondas de luzes de um amanhecer presenteado como uma salvação predestinada. Eu me levanto e manco pelas portas da casa, escapo do meu casulo, desejo testemunhar o Sol com meus próprios olhos. O alívio se espalha agora, um calor reanimando e trazendo minha consciência à sua normalidade, tatuando mais uma memória em que sobrevivo a mim mesmo.

Daniel Yukon
Enviado por Daniel Yukon em 11/05/2020
Código do texto: T6943906
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