Última mensagem
Contemplar a moção do mundo em minutos entorpecidos por pensamentos ocos, fora esta uma maneira infalível de escapar da realidade e abrigar minhas preocupações na imagem de ti desenhada com os resquícios das intocadas lembranças. Sei de cor as proporções das linhas em seu rosto, o mapa inteiro das sardas e olheiras, precisamente a ilusão óptica lançada ao fitar ininterruptamente o oceano de suas pupilas.
Pois te esquecer já é fora de questão, um caso perdido. Do sorriso involuntário ao recordar as mínimas expressões até a familiar, distinguível voz me alcançando entre as nuances sonoras até da vez em que o céu se manifestou de acordo com a intensidade de sua natureza, uma força irrepreensível, trovoada por dias seguidos e recompensada com uma disposição ensolarada radiando sobre a lividez de minha pele.
Mirando a agora cadeira desocupada, o quintal desprovido de seu senso maternal para as plantas recém-nascidas e flores preferidas, páginas não mais preenchidas com os versos que arquivariam sua existência em mais uma tarde em que você vivera o pináculo de seu ser, as roupas ainda mantidas na mesma gaveta do armário, conservadas as manchas e aromas.
Beirando no medo inevitável de que o significado deixa de ser sobre querer, mas sim precisar mais que nunca. Precisar saber se minhas palavras surtiriam efeito, se a possibilidade de um reencontro é uma ilusão perdida numa miríade de mentiras confortantes, se há algo além no tempo que lhe fora abandonado ou é apenas um fardo repassado aos que ficaram.
Tendo a certeza de que sua estadia fora efêmera, irreplicável e inesquecível. Consumindo os momentos restantes num desmoronar orquestrado das consequências que esculpiram a monumental perda diante dos nossos olhos. Colhendo-se aqui um luto interminável, cercado pelas coisas que o afastam de oblívio e negam meu livramento. Escritas as confissões em ordem de importância no espaço restante do epitáfio, a última mensagem a qual não pude te presentear quando você estava mais perto do que jamais estará novamente.