Uma pausa

Largou as sacolas que lhe abarrotavam o entremeio dos dedos

e faziam a circulação sanguínea represar na ponta de suas falanges.

Olhou para o céu.

O olhar vazio de expressões, quase morto.

Mas, a morte lhe cairia como uma benção em vista

da vida que levava.

O céu que já fora povoado de algodão-doce e felicidade,

hoje refletia apenas as bochechas pálidas de nossa protagonista.

Afagou os cabelos, ressequidos pela falta de higienização.

‘Não são puras minhas preocupações? Deus!

Por que ninguém me ajuda?’

Respirou fundo, abaixou-se,

tornando a pegar as sacolas e sentiu o mundo escurecer,

a rua se tornou distante dos pés,

caiu.

Ninguém na rua sentiu falta do instante caído que faltava ao tempo.

Todos somos, afinal, diferentes instantes.

Instáveis.

Incapazes.

Inconsequentes.

E é óbvio que há instantes que entram para os livros de história e

outros que jazem esquecidos na latrina.

Pena, para a pobre meretriz desmaiada de fome na rua lamacenta.

Ela não sentia a si mesma como instante.

Sentia-se uma pausa.

Daquelas que a angústia não deixa esvair. Uma pausa fria,

sem emoções, nem derradeiros

sem fantasias, nem criações.

Quando recobrou a consciência as sacolas já haviam desaparecido.

Mais do que nunca,

ela era uma pausa vazia.

Memórias póstumas da Liberdade
Enviado por Memórias póstumas da Liberdade em 14/05/2020
Reeditado em 14/05/2020
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