Excesso de valentia!...

Modorrentamente, aquele pequeno e nostálgico lugarejo vivia escravizado pela folclórica valentia do seu povo. Um povo arcaico, enquanto escravizados pela contagiante preguiça física e mental, sempre e sempre aliada aos seus estranhos costumes.

A pracinha da igreja era o ponto preferido para as suas improdutivas, mas divertidas reuniões, onde todos ali compareciam devidamente munidos das suas histórias sobre enraizadas crenças, manias, idolatrias, medos e valentias.. .

- Eh, Carlão! Você ficou sabendo do fim trágico de dona Severina, a beata e generosa senhorinha, viúva recente do ex-famigerado valentão do lugar, o respeitado sergipano Epaminondas?

- Fim trágico? Mas o que foi isso, radialista? Ela não morreu... Morreu?!...

- Morreu. Morreu e morreu de morte bem morrida, Carlão!

- Ainda bem que não foi de morte matada... Senão, os bandidos do lugar haviam de se ver comigo. Um doce de senhorinha, a dona Severina.

- Sei não , Carlão! Sei não... E quem garante que não foi mesmo de morte matada que ela morreu, embora muito bem disfarçada?. ..

- Então foi?... E alguém sabe do paradeiro desse dianho matador?...

- Foi... O paradeiro exato ninguém sabe ainda, mas dá até mesmo pra dizer que o matador veio pelos ares, Carlão!...

- Pelos ares, é?...

- Sim, pelos ares... Talvez isso explique o danado ser tão rápido e sorrateiro.

- Pois esse dianho voador vai se ver comigo, ou ninguém mais por aqui precisa ter medo de mim, radialista!...

- Mesmo você, com toda essa tua valentia, tenha cuidado, Carlão! Dizem que ele não perdoa ninguém que se lhe aproxime... Nem ricos, nem pobres!... Nem covardes, e nem valentões feito você, Carlão!...

- Vamos ver! Vamos ver isso de perto, bem pertinho... Cadê minha peixeira?!...

- Sei lá, Carlão! E então, também sou de briga, agora?...

- Deixa quieto, que esse "aéreo cavernoso" vai se ver comigo, ah, se vai... Tadinha de dona Severina morrer assim, sem chances nem mesmo de se esbaforir...

- Pois é... Ah, e teve também o seu Joaquinzão, teu outro companheiro de valentia!... E a Elzinha, aquela jovenzinha tão convidativamente bonitinha!... Mais dona Carlota, professora tão dedicada aos seus alunos e a toda comunidade... Já morreram tanta gente boa e inocente, Carlão!...

- Até dona Carlota, minha xará, foi vitimada pelo monstrengo, é?...

- Até ela, Carlão!...

- Ah, se eu pego esse sujeitinho danado, e eu trucido com ele e seus comparsas... Ouça bem o que te digo, radialista! ...

- Acredito! Mas tome cuidado, muito cuidado, Carlão! Até mesmo porque você também é feito de carne e osso, homem...

- Certo, radialista!... Embora bem mais osso afiado pro combate, que carne frouxa, fraca, acovardada e ensanguentada. Espere só o que vou fazer coesse matadorzinho de araque, me espere só!...

- Melhor não, Carlão! melhor não...

- E por que raios então, eu não havera de pegar e trucidar um dianho desses, que tá matando só as gentes boas do lugar, radialista? Se ao menos acabasse só com os ladrões e os corruptos da nossa região...

- Melhor não! Melhor você nem tentar confrontar com essa desalmada criatura, Carlão!...

- Pois sim, que vou deixar o dito pelo não dito, radialista! Pois sim... Você ainda vai ouvir muito antes de começar a noticiar os novos fatos, mas vai ouvir bem mais é de mim, isso eu te garanto.

- Nem quero ouvir... Vai não, Carlão!...

- Vou sim.

- Vai não!...

- Vou sim... E não sou tido então como o mais famigerado valentão deste sertão, radialista?...

- Sim, sim, isso é verdade. Valentão, até bem mais que simples valentão... Mas esperto e inteligente, como é preciso ser nesses casos mais complicados... Sei não, Carlão!...

- É... Mas vou sim, ora, ora, se não havera de ir... E você que me espere pra saber dos novos sucedidos, radialista! Espere só...

- Não vá, Carlão! Fique longe dessa tamanha encrenca, companheiro!...

- Vou caçar esse danado até matá-lo de morte matada, beeeeeem matada e dolorida... E isso daí não é pra depois, mas é pra agorinha mesmo, radialista!

- Melhor não, Carlão!...

- Sim, sim, melhor que isso assim seja, radialista! Só me diga o nome e o jeitão desse dianho, e deixe o resto comigo...

- Está bem, Carlão! Se é assim que você quer... Dizem que o tal matador veio lá das bandas da China, tem "partes" com os morcegos, o corpo todo recoberto de farpas, e que atende pelo nome de Coronavírus... Mas o que ele mais gosta mesmo, é de pegar essa gente que têm fogo no rabo, e assim não se assentam em lugar nenhum, mas vivem daqui pra lá, de lá pra acolá e de novo pra cá, você me entende?...

- Imagina se eu pudera de te entender, radialista!... Voce é estudado demais pro meu jeitão simples.

- Pois assim é... Mas dizem também que esse tal de Coronavírus faz só a primeira parte do serviço sujo, deixando os golpes de morte sem nenhuma misericórdia, para uma tal asfixiadora... Uma criatura da peste que atende pelo estranho nome de Covid-19. Melhor você não embarcar nessa, Carlão.

- Valeu a informação pra empreitada, radialista. Até mais ver!...

- Até mais ver, Carlão! Quê fazer, se você é o homem mais valente do sertão...

E assim foi. Mas exatos quinze dias depois, em frente ao lúgubre e não menos folclórico cemitério do lugarejo, pensem numa assustada e empolgada multidão de contadores de causos, então sobre a recente morte de mais um ex-famigerado valentão, aquele que era xará da falecida Carlota, a mais dedicada professorinha do lugar.

Tenho dito e contado.

Armeniz Müller.

...Oarrazoadorpoético.