O teto branco - 4

Para acompanhar o fluxo da ideia, leia também: à memória do que passou - capítulos 1,2,3

Da geração dolorosa

Do meu pai não tenho quase nenhuma memória afetiva, pois ele optou viver longe dos filhos por vontade própria. Eu aceitei. O que esperar do outro, se ele não quer estar com sua família, se escolheu viver distante.

De minha mãe muitas recordações do tempo da beleza adulta até a fase idosa. Uma mulher generosa e persistente, que apesar de enfrentar muitos desafios e preconceitos, criou e educou sozinha quatro crianças, num tempo em que mulher separada era chamada de puta. Mesmo assim, ela nunca perdeu a alegria de viver. Penso que herdei sua generosidade, a perseverança, o otimismo e a transparência. Desbravadora mulher, leonina como eu.

Ela conta que no momento de meu nascimento esse pai festejou enchendo a cara de cerveja com uns amigos num boteco qualquer. Meu nome fora ele quem decidiu. A mãe queria Rita de Cássia. Ele registrou Cássia Maria a contra gosto de quem me criou sozinha e com muita luta. Nome de que gosto muito, pela combinação composta; é forte como eu, como minha mãe Maria Thereza.

A esse pai eu agradeço pela parceria com essa mãe especial, por terem me permitido vir ao mundo e ser essa pessoa de mente inquieta, que cedo descobriu nas letras escritas um canal para soltar a voz. Esse homem soube bem comemorar minha vinda ao mundo e nada mais. Abandonou-nos num mundo dominado pela primeira classe, ou pela classe média alta, em que filhos de família humilde não têm vez, nem voz.

Sem meu querer, aos seis anos testemunhei minha mãe descobrir onde esse pai se escondia de nós: nos braços de outra mulher. Após essa lastimável revelação, presenciei minha mãe batendo uma panela na própria cabeça, na tentativa de eliminar a dor de ser traída e desrespeitada. Foi quando ela, corajosamente, deu um basta naquele relacionamento sem futuro.

Certo dia quando nos preparávamos para mudar de residência, ele cometeu a crueldade de queimar numa fogueira todos os livros que havíamos ganhado de uma senhora com quem minha mãe trabalhou por alguns anos, e eram muitos. Até hoje, eu e um dos meus irmãos, que escreve poemas lindos, relembramos a cena gravada em nossa memória, de tão forte que foi, e o quanto sentimos e choramos naquele momento. Mas em vez de diminuir nosso gosto pela leitura, essa atitude o fez crescer. Estou convencida de que pessoas perseverantes não perdem a essência nem quando são atingidos na cabeça e no coração pela ignorância alheia. Pude relembrar a cena no curso de jornalismo, assistindo ao filme Fahrenheit 451 – cujo roteiro mostra, num futuro hipotético, que os livros e toda forma de escrita são proibidos por um regime totalitário, sob o argumento de que fazem as pessoas infelizes e improdutivas; por isso, os livros eram queimados. Revivi na memória a atitude desse pai que, além de tentar destruir nosso imaginário, disse com tom autoritário: para que ler livros se filho de pobre não tem condições de estudar.

O tempo passou e voltei a vê-lo aos quinze anos, momento oportuno para lhe entregar uma carta revelando o transtorno de sua falta em minha vida. Disse verdadeiramente o que sentia, confrontei-o. Esse pai, através de minhas letras escritas, surpreendeu-se ao saber dos meus sentimentos. Foi quando ele me chamou de ovelha negra da família.

Quando jovem adula, fui morar com um namorado, e esse pai veio com um discurso paternal, dizendo que não podia dar certo nosso relacionamento, porque o rapaz tinha ex-mulher e filha pequena. Igual a ele quando se casou com minha mãe. Não sei se é certo considerar que os fracassos em meus relacionamentos amorosos são devidos ao comportamento desse pai e dos fragmentos recorrentes em minha memória.

Jean Paul Satre escreveu: “posso não ser responsável pelo que fizeram de mim, mas sou responsável pelo que faço com aquilo que fizeram de mim”.

Na vida adulta, responsável por mim mesma, me convenci de que meu ponto frágil envolve paternidade. Essa falta de confiança no ser humano deriva do medo de ser abandonada, desrespeitada e deixada para trás outra vez. Por isso, com receio de viver novamente situações de limo, de curvatura, de humilhação, de desvalorização, de me submeter a receber quase nada, fiquei sozinha por doze anos, guardada, cultivando o amor próprio. Provavelmente, a falta da figura paterna na infância e juventude contribua para a desordem da vida adulta. Com isso, acabo atraída ou atraindo homens com o perfil igual ao desse pai: descompromissados, sem interesse de vínculos, sedutores.

*Trecho de "O teto branco", autopublicação de minha autoria

Cássia Nascimento
Enviado por Cássia Nascimento em 31/05/2020
Reeditado em 03/06/2020
Código do texto: T6963622
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