O fagote

Ele atravessou a avenida tumultuada e desorganizada do meio dia, em direção ao prédio em estilo neoclássico, com paredes escandalosamente pintadas de lilás.

Ao subir a primeira escada, quase derrubou uma senhora de cabelos brancos de nuance lilás como o prédio. Esta, falou qualquer coisa desabonadora enquanto ele seguiu em frente.

A recepcionista, como sempre, mascava um chiclete eterno, encarando a tudo a sua volta com um tédio mortal. Ela pensou consigo mesma, quando é que aquele idiota chegaria na hora certa para os ensaios.

Desde que atravessou a avenida, os seus sucos gástricos pareciam roer o estômago ao ponto de ter a sensação de que alguma outra criatura habitava o seu corpo.Era uma mistura de nervosismo, com excitação e a sensação de que algo na sua vida seria importante.

Tanto que ao subir a primeira escada, de tão cego que estava, teve a impressão de ter se esbarraqdo em alguma coisa, mas já estava atrasado demais para voltar.

Viu que a secretária mascava seu chiclete mas nem parou. Correu para o salão principal.

Ao entrar, viu que todos já estavam em seus assentos. E com uma cara nada amistosa. Felizmente, o maestro também estava atrasado. Aquele filho da mãe sem nenhuma compaixão humana.

Ele tratou logo de montar seu instrumento. Um fagote. Finalmente, após exaustivos ensaios, ele assumira o lugar de solista na sinfonia Patética de Tchaykowsky. Quando o maestro o indicou para o solo, ele quase teve um surto, mas manteve a calma, em nome da boa convivência. Não é agradável para os outros, ver um corpo caindo e fazendo um barulho que com certeza, reverberaria para todo o salão.

O avô dele, que tinha um gosto musical semelhante ao de Napoleão Bonaparte, ao ouvir o tal solo que abre a sinfonia, perguntou: "é só isso?".

Ele nem respondeu. Mas pensou: "É tudo isso".

Ele achava que Tchaykowsky tinha um problema. Ninguém escreveria um solo daqueles para fagote. Qualquer outro em sã consciência, escreveria para clarineta ou oboé. Mas essa era a oportunidade que faltava.

No salão, todos já prontos e afinados. O Maestro entrou. Algo parecido com Mussolini. Limitou-se a dizer :"Primeiro movimento. Fagote".

O solo começou. O som se desenrolava como uma serpente cansada.

O Maestro: "É pra ser soturno. Não exausto".

O solo se repetiu. Desta vez, sem maiores correções.

Por dentro, ele sentia uma satisfação não manifestada no seu rosto. Aquele solo era tudo o que precisava na vida.

Lá da outra sala, onde eu estava, eu podia ouvir muito bem o começo do quarto movimento. Nada é tão doente quanto essas cordas entrelaçadas, que formam uma melodia de notas soltas em dois conjuntos de cordas. Eu ainda pude sentir mais uma vez, aquela melancolia que precede a morte.

Dalí em diante, eu segui o meu caminho, com aquele solo de fagote na cabeça. Eu pensava em como um único som, podia revelar tanto sobrea vida.

Eu caminhei até a praça, comprei um sorvete, e peguei o meu carro. Lá dentro, havia um bouquet de flores,

A tarde caía. Como cai tudo no mundo, aliás.

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 16/10/2007
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