O VESTIDO DE ORGANDI

Os mais jovens diriam que hoje é o "níver dela". Coisa comum.

Eu, com total reverência ao seu longo tempo, digo que hoje a vida lhe aniversaria e assim, com a emoção dos que sabem que o tempo é ouro e que nos escorre misteriosamente sem saber para onde, escrevo sobre ela porque sei que não se trata dum simples aniversário.

Trata-se duma linha de chegada.

Afinal,não é todo dia que se completa noventa e seis anos.

Até o "níver" do ano passado, quando eu lhe entreguei um bolinho simples feito por mim, o mundo ainda corria numa normalidade relativa e eu pude ter o prazer de ouvir sob seu sorriso entusiasmado: "Nossa, nunca tive um bolo bonito assim!"

Eu queria lhe acarinhar...e fui eu quem recebeu o presente.

Hoje ela estava sonolenta.

Quando estamos no outro extremo da vida, poucos dias nos pesam como anos e um ano a mais nos faz modificações de séculos...

Quanto a ela, digo que são anos corridos cuja maratona não foi fácil e eu aqui me pergunto se a vida realmente dá sua trégua a se tornar algo mais brando para alguém.

Foram muitas as perdas mas também houve muitas alegrias de felicidade transbordante.

Às vezes eu a pego conversando com as suas saudades.

Da minha infância, ao passar férias pela sua casinha mágica do interior, eu me lembro que eu gostava de apagar as bocas do fogão que ela prontamente acendia para a sopa das tardes.

"Foi o vento!" -ela dizia a sua irmã, minha mãe, que nos deixou há três meses; e essa desculpa ela dava mesmo me vendo fazer a arte pelo reflexo da tela da televisão.

"Vento nada, é essa menina!"-lhe alertava minha mãe.

Uma malcriação minha e ela, num canto escondido de todo mundo, me dizia para que eu tomasse cuidado porque, se o sino da igreja tocasse, eu ficaria para sempre com a cara da minha careta congelada, feita às escondidas...ao mundo.

"Não acredito nesse sino!"-eu lhe retrucava segura de mim.

Até recentemente, depois do almoço, meu cafezinho era o primeiro que chegava trazido por ela, quentinho, no bule de ágata sobre a mesa.

A vida mudou, como muda todo dia para todos nós.

Há cinco anos ela fechou o portão da sua casinha mágica depois de se lembrar de regar uma plantinha do quintal e de fechar a tampa do fogão, para uma rápida viagem que faria conosco a São Paulo.

"assim quando eu voltar, a planta ainda estará viva e o fogão sem poeira", nos explicou certa da sua volta.

Foi a última vez que viu sua casa.

A idade avançada não lhe permitira voltar. Estaria sozinha, se ficasse.

Dia desses, ao me ver entrar na casa sem sapatos, logo me perguntou bronqueada do porquê eu estava descalça:" tira o pé do chão menina, vai ficar resfriada!".

Fazia tempo que eu não me sentia criança...e ela tem esse poder sobre mim.

A sua fala também me fez sentir saudade do tempo e dos resfriados comuns...daqueles que no interior se cura para sempre, apenas com repouso e com chá de gengibre feito pelas tias- avós.

E sem se precisar pensar em anticorpos...

Ela não entenderia minha saudade, sei disso.

Hoje lhe cantamos um parabéns, dentro de toda a precaução que a época pandêmica pede; e eu lhe entreguei o mesmo bolinho feito por mim.

Tinha também canjica e curau para lembrar o clima de São João em quarentena.

Quando me olhou com o bolo na mão e desconfiou se tratar duma festa, prontamente voltou ao tempo e me perguntou:

"Ah, você vai ao casamento? Então prepara o o seu vestido de organdi cor-de-rosa."

Foi um que ela me fez e me viu usar aos nove anos de idade.

Ela tem certeza que foi ontem. E eu também.