Coveiro da menina morta

Não vejo teus ossos menina morta. Teu corpo se desmanchou? Se esvaíram as memórias da tua saliva fria? Amante dos aviões, por onde andam teus pés flutuantes? Escapou da cova onde cessou teu corpo frígido? Não recordo lugar, o cemitério eram incomum; planície sem jazigo, nem tumba. Talvez ela tenha feito uma travessia, se deslumbrado com luzes insignificantes. Sem hora marcada, tudo que se diz eterno padece. Você não queria morrer, mas por estranhas razões, tua presença de foice causava calafrios.

O juramento de um guardião te arrancava escárnio. Nunca existiu qualquer tesouro, sua alma já estava liquidada. Tua pele gélida foi de poucos amores, o sabor do teu ventre desnudo era incolor. Produtora de ópio, viciou todos os vizinhos. Carnes em ruína se lançam em redemoinhos de almas. Debruçada você clama com temor diante do fim, se afoga no pavor do esquecimento. Por quais razões nos jogamos nos velhos abismos? Seu sorriso mostrou cartas, canções, histórias familiares, lágrimas, poesias, contos, livros e esquinas, quiseste alguém por perto com o bolso cheio de memórias.

Seu desejo era ser embalsamada. Livre dos vermes, um resto nu e imortal desta terra ensolarada. Com água assinamos um contrato, pacto efêmero que jamais se cumpriu. O tempo causa desatinos, após sua morte absolutamente tudo foi forjado. O reino dos vivos é o império das trapaças. Teu nome escrito com letras singelas na areia, sem as leis da lápide, uma sombra sorri por ter dilapidado teu solene patrimônio. Tua carcaça nua foi deitada cuidadosamente na sepultura do esquecimento. O dia em que você sucumbiu só passou. As crianças brincam com o cálice da tua fé, os versos de cem anos todos pisoteados. O ladrão saqueou os dentes da tua boca, mas por puro comedimento foi incapaz de furtar o brilho horripilante dos teus olhos.

Quem saberá quem foi teu coveiro? Apenas duas testemunhas. Mesmo abraçada pelo silêncio, o antigo amor desfigurado ainda flutua ao teu encontro. Foram esmigalhadas as interpretações do sonho, ninguém se importa com o paradeiro do teu sopro frio. Nas lembranças, somente viscosidades e teu pranto abafado por gargalhadas. Uma pá de metal frio e fosco acena com terra um adeus menina, aqui não jaz nada.

Daniel César, 2015.

D César
Enviado por D César em 02/07/2020
Reeditado em 10/10/2020
Código do texto: T6994215
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