Uma dor de cada vez

"Levantei-me. O tiro de misericórdia. Porque estou cansada de me defender. Sou inocente. Até ingênua porque me entrego sem garantias. Nasci por Ordem. Estou inteiramente tranquila. Respiro por Ordem. Não tenho estilo de vida: atingi o impessoal, o que é tão difícil. Daqui a pouco a Ordem vai me mandar ultrapassar o máximo. Ultrapassar o máximo é viver o elemento puro. Tem pessoas que não aguentam: vomitam. Mas eu estou habituada ao sangue."

(Clarice Linspector)

Abrir as portas do desconhecido é sempre uma tarefa difícil. Fácil seria ficar estática. Fácil seria deixar explodir a pólvora armazenada na mente. O desconhecido é difícil e por isso, tão belo.

Rir de mim mesma também é belo. As mentes são sugestionáveis a qualquer desgraça, mas não ao riso. Ao riso pra si mesma, ao riso de si mesma em frente a desgraça. Eu rio. Eu, rio de águas. Eu, rio calmo e tranquilo cortando os campos. Eu, rio, e bato de frente com o mar. Há sempre um confronto. Mas ao final, as águas se tornam unas. Vence o mar porque é maior. E eu rio. Sorrio. E continuo. Mar e rio.

Quando tudo está confuso e dolorido, abro o meu livro e me escrevo. O papel da pele deixa de ser branco e fica impregnado de vida; a minha. Torna-se profundo com a letra esculpida dos momentos difíceis e se faz minha história.

Quando as coisas em mim se acostumam com o ritmo e se tornam fáceis e sem sentido, inverto a ordem das coisas. Escrevo com a mão esquerda, me forço a andar com um passo diferente do meu habitual, faço poesias de trás pra frente e quando tudo me incomoda de forma absoluta e me desnorteia, sinto a claridade das coisas e me torno melhor ao fazer as coisas de antes. Do cotidiano.

Assim é a dor em mim. Assim é o veneno que bebo em goladas largas. Assim é o sangue que vejo correr na minha veia e, por vezes, verter dos meus olhos.

Ao fim, eu rio. Eu, rio, corto estradas e a vida recomeça.