O Cobertor

Ainda embrulhado, mas já desperto, pareço um presente que aguarda o seu dono vir buscá-lo. Cruzo os braços impacientes e peço, suplicante, que o barulho lá fora cesse – minha janela é uma porta para o inferno, e eu odeio girar maçanetas e abaixar trincos. Não há sol; apenas nuvens demasiadamente esbranquiçadas, quase inexistentes. Acho falta de respeito do céu. Como oponentes que se unem para uma vingança comum, somam-se os ruídos e, lá fora, acontece agora um festival de ofensas sonoras, não necessariamente lexicais porém estritamente lixo.

Ainda embrulhado, levanto meu corpo e o obrigo a caminhar em direção ao café com creme, ao dicionário, ao vaso sanitário, ao telefone, e aí paro. Reconheço a voz, memorizada a frase - programação incorreta, favor consultar o manual - e desligo, oblíquo, porém contido. Raiva passa.

Ainda embrulhado, retorno ao quarto - corpo e mente já concordam com o destino – e, novamente, deito e, infelizmente, volto a dar ouvidos aos palavrões sem sentido do cachorro, dos vizinhos, das máquinas identificáveis, dos automóveis desconhecidos, do cantor que eu não tolero. Continuo a esperar meu dono, como um presente que o aguarda, desperto, que tem o seu invólucro como o mais fiel dos companheiros...