Vanessa

Vanessa passou entre os edifícios sentido tremores, na mais pura e insignificante sarjeta percebe que uma linguagem sem governo prolifera. Ela é tomada por tolices, mesmo estando alegre em crer que viu outro nascer do sol. Sem propósito além de arder, o estranho astro emana atrozes fios de luz ininterruptos. Carros cortam o vento, pés sem rosto são impelidos pelo vício aos garimpos de paranoia.

Nos sinais da humilhação caminha paulatinamente. Com os braços retraídos ela se vê entre a carne dos homens que cresce e cria. O pensar rói como um gabiru, torna cada vez mais difícil disfarçar o som de corrosão na barriga. Sensações díspares são mescladas na calçada. Na vigília de guardiões fétidos uma guerrilha disforme abocanha lascas de prazer. Mãos ressequidas e ociosas atiram pedras no vazio, espatifados no lixo, estilhaços de espelho refletem o resto do mundo. Mesmo sendo mísera e vestindo farrapos, Vanessa não emana o odor de medo dos “normais”. Sabe que num dia igual aos outros, sua carne pouca dentro do cubículo será devorada pelos bichos.

Um olho (o único que ela possui) vê retângulos se imporem no céu. Essa ideia malpassada, chamusca nas labaredas do pensamento infantil - do ventre de concreto das instituições nascem sombras. Vanessa expele náusea no meio fio, seus pés descompassados percorrem uma trajetória tatuada no sonho. Vive o irrealizável, e se esquece daquilo que foi ao entrar no delírio turvo das ruas. No ouvido, o estômago se queixa da combustão itinerante dos passos. A meio caminho, as poças de água rasa dizem muito sobre coisas passageiras. Vanessa é um corpo desértico que divaga, onde a cristalina crueldade se enseja.

De modo simultâneo e indiferente, uma chuva fina escorre pelos azulejos cheios de musgo espesso e letras do submundo. Vultos passeiam deixando cair de seus cabelos encharcados gotas fugazes como os instantes do tempo. No teto, anjos minúsculos com asas translúcidas se debatem contra a luz. A gentileza de Vanessa é amordaçada pela noite sem limites, o brilho ofuscante ceifa nas esquinas. Por um segundo, ela se deixa encantar por parafusos incrustados no asfalto. Pisa no magma de piche, sente nas solas desgastadas este túmulo enrijecido e áspero, sepulcro raso dos animais abandonados.

Centenas de letreiros mórbidos observam seus pequeninos passos. Placas imensas emanam pixels quentes de coisas úteis. Vanessa arranha sua testa com as unhas sujas, suspira fundo, como quem cansou de procurar filtros de cigarro. Exausta, faminta, mendiga pequenas porções de comida dos amigos que mal conhece. Nem mesmo ela nota que seus passos irregulares deixam um rastro de areia imperceptível.

Será que alguém um dia já sentiu sua falta? Quando as brasas do cachimbo remendado apagarem, em qual página vai estar o livro que ela jamais leu? Diante dessas perguntas sem sentido, o autor se vê sem outra possibilidade a não ser incinerar esses escritos amaldiçoados. Papéis que evaporam como fumaça no torpor de um instante, existindo somente para se consumir no calor das chamas. Vácuo quente e silencioso que faz esquecer coisas sem relevância.

D César
Enviado por D César em 15/08/2020
Reeditado em 17/04/2021
Código do texto: T7036127
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.