ARQUITETURA FANTASMA

Ao caminhar pela casa antiga, onde lençóis cobremm móveis centenários, cada lembrança se esgueira pelas frestas, desagradavelmente vivas. Há muito que não havia quem habitasse aquela construção secular, tão fora de propósito num mundo de prédios de vidro e impessoalidade. Era, de certa forma, um monumento à teimosia, contendo dentro de si vestígios de glórias e dramas tão comuns a uma família.

Passando à sala de jantar, permanece ali, não se sabe como, o retrato quase que totalmente deteriorado, do patriarca em trajes de festa. Nunca se soube muito dele, além de sua fortuna e do fato de ser implacável. Algo que, nos seus descendentes, inspirava uma mistura de respeito e asco. O que reverberou por gerações na forma de traumas e viagens para nunca mais voltar. Agora, ele é apenas um retrato mesmo. Uma sombra de um poder que cessou com a vida.

A velha casa, espremida entre a modernidade e o “não dou a mínima”, cansou de ser disputada, até que não havendo acordo, foi se enferrujando e se tornando enrugada. Parou num espaço de tempo, onde as coisas perdem até mesmo seus nomes. Era só a velha casa. A velha ideia de que nenhum triunfo dura eternamente, especialmente quando não se herda a obstinação e o talento de um patriarca. Aos poucos, a ulceração vai fazendo seu trabalho de desabar lentamente, a herança de lembranças, histórias, horrores e sonhos que formam as fundações.

Olhando-se para cima, forro e telhado perderam sua função. São cacos que mal conseguem esconder o céu, e que certamente não fazem frente á chuva. O que em muito destruiu o piso vindo de algum país europeu, para impressionar a olhos jamais egressos da província deslumbrada. Bailes elegantes já passaram por eles, arrastando moças sonhadoras e rapazes traiçoeiros. Viúvas muito honestas e senhores cujos bigodes inspiravma respeito. Onde estão todos agora? Não se sabe onde foram dar os sonhos de todas as almas perdidas que um dia se aglomeraram junto ao piano, para ouvir Chopin ou dançar alguma valsa mal executada.

E há ainda o lugar onde se ocultava a serventia. O espaço de todos os que servem à indolência burguesa, na forma de libertos ex escravos, com avental, bandeja, espanador....Desses, a casa se lembra como o desgnio divino da autoridade constituída. Se é servo, é porque Deus quis. Isso alivia a culpa e esta, se traveste de misericórdia. Então, nenhuma lágrima derramada pela grande governanta que faleceu de velhice, trabalhando. Nem pelas moças de olhos baixos, que mataram seus fetos, fruto de abuso dos filhos dos donos. Casas elegantes, paredes revestidas de flores rococó, são abatedouros de liberdades.

Olhar por entre portas, escadas e porões, é olhar para um pequeno instante da vida, feito de respeitos comprados, vestidos de seda e serventia anônima. Mas a história é corrosiva. Ela elimina até mesmo o retrato que deveria ser pra sempre, do patriarca que repousa na sala de jantar. E a casa não revida. Ela some. Ela se espreme, sem lutar pela vida, entre sirenes, gritos, mendigos, arames, vergalhões....e encerra dia após dia, o orgulho imenso que a fez objeto de fantasias. É por isso que sempre aqui venho, pra entender o propósito do caos. Talvez seja colocar em perspectiva, o limitado poder de relutância .

A noite já começa a esconder o que resta da estrutura das coisas. Mergulha as paredes no anonimato e na feiúra. Esse é o momento de me retirar, pra outro lugar e aguardar que tudo isso, seja apenas pó. Então, atravesso as paredes e quem sabe, daqui mais uns 100 anos eu retorne, para ver uma pilha de escombros e ervas daninhas...

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 21/10/2020
Código do texto: T7092874
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