PELA ACROBACIA DA VIDA

Era mais um dia que vinha na promessa dum sol alto.

E como sempre fazia, logo pela manhã, ela se sentava ali naquela sua poltrona macia que ganhara dos filhos para espreguiçar suas horas cansadas.

A vida lentamente se lhe desacelerava...

Gostava de ver o sol se agigantar no horizonte a quebrar as nuvens remanescentes de figuras pitorescas da noite, como as desenhadas nas ilusões dissipadas qual névoas esvaecidas pelos ventos.

Às vezes, então, pegava um lápis e num papel escrevinhava versos e achava divertido, naquela altura da vida, expressar suas emoções ao mundo.

Vez ou outra, perguntava o significado de alguma palavra nunca dita ou esquecida...

Tinha ela um amigo aéreo, ligeiro e pontual.

Todos os dias, sob o soar do cuco das nove da manhã, ele chegava do alto, num pio débil mas comunicativo-parecia ter corda!- pronto para bebericar seu suco de vida que ela ali lhe ofertava pontualmente, a encher o bebericador entre as flores da sacada.

Como agradecimento a ave lhe batia suas asas velozes e coloridas, movidas por alegria notória; e ela, obviamente, se encantava com a aquela incrível acrobacia no ar porque ambos sabiam que o alimento e as conquistas principais são invisíveis ao ópio das incautas ambições.

Os tantos pôr-de-sóis haviam lhes dado tais ensinamentos...então, voavam juntos pela importância dos atos.

Nos últimos tempos, já se tornara nitidamente muito difícil para que ela se sustentasse em pernas firmes para a realização do levantar da poltrona, buscar a água da vida logo ali e reabastecer o bebedouro da ave que sedenta chegava, muitas vezes a lhe despertar dum breve cochilo.

Todavia dispensava ajuda para reabastecer o bebedouro, a ensinar que missões de vida são intransferíveis.

Com seu amigo alado também aprendera que a maior acrobacia da vida é não desistir, portanto era preciso continuar.

E ela continuou.

Até o dia em que a ave recém chegada encontrou seu pote vazio.

Balbuciou seu pio, espalhafatou -se no ar tentando sugar a vida por todos os orifícios das flores de plástico, só agora desidratadas de verdade.

Então, bateu suas asas de cores refringentes até a poltrona da sala e piou sua despedida à grande amiga já embarcada no sono dos céus...

O cuco soou nove horas pela última vez. Ele entendeu o recado do seu igual, embora talhado na madeira.

Assim...o amigo beija-flor voou ao seu mesmo destino, até cumprir o tempo de voo permitido para o cumprimento de toda misteriosa existência.

Nota da autora: dedicado à minha mãe que nos deixou neste ano.