Cemitério de motos

Um cemitério de motos está impregnado de células humanas mortas. É um liquidificador mudo batendo diversas misturas: adrenalinas, fugas, imprudências, molecagens, correrias; belas paisagens; paixões velozes e amores sólidos; laços que se estreitaram pela necessidade, pela identificação, famílias de sangue, de trampo ou de lazer; séries de acidentes fatais ou até mesmo cômicos. Seja pela labuta, suor ou prazer, hoje elas estavam todas ali, aglomeradas, com sorte alguma vai ser ressuscitada.

A figura de uma porção de motos velhas numa carroceria de um pequeno caminhão, também razoavevelmente velha, é algo bastante representativo, simbólico por uma única razão: a mobilidade. Hoje uma cidade de grande porte praticamente fica paralisada sem o corre das motos, o mesmo acontece com o Brasil, o país pára sem as incansáveis e duradouras viagens dos caminhões. Motos e caminhões são dois pilares do Brasil contemporâneo. Confesso que na hora que topei com esse caminhão cheio de motos fantasmas pela pista nem refleti sobre a importância política-econômica exercida pelo papel da mobilidade destes dois veículos, não estava nem pensando na minha própria mobilidade, pois deixei de ultrapassar o caminhão algumas vezes para ficar contemplando aquela carroceria repleta de memórias. Qual seria o final daquelas motos? Um ferro velho provavelmente. Será que os tipos de metais da sucata valem muito nesse tipo de mercado? Como todas aquelas motos foram parar ali, será que foram frutos de apreensão e ficaram ao deus dará de um pátio policial qualquer? Indações para matar o tempo na pista...

Nunca pilotei uma moto, sempre tive medo, medo de ralar, de me quebrar inteiro, e sinceramente tenho a sensação de que teria me acidentado gravemente, não tenho lá muita coordenação para objetos de duas rodas, motorizados ou não. Enfim, nunca tive vontade, nem mesmo de andar na garupa, só pegava carona em último caso mesmo, ao mesmo tempo sempre achei massa perceber o prazer ostentado pelos apaixonados por moto. Acho que a moto contém uma dualidade intensa que poucas tecnologias produzem: se sentir livre, dono do seu nariz, e ao mesmo tempo se sentir frágil. De Hermes a uma casca de ovo. Claro, tantas outras dualidades que a motocicleta provoca. E já quase entre a fronteira com as Minas Gerais da minha vida, veio a visagem poética:

cidades tecidas por caminhões e motos,

perfil latino-americano, brasileiro

brasil travado, inseguras ruas para pedestres

raras são as ciclovias

profundos descasos circulares

aorta e artérias urbanas

para desentupir as veias

só de vinte e cinco cilindradas pra cima

aquela média clássica da ideia

de todo mundo comprar um carro

por prazer, lazer , status,

a ilusão de ter mais espaço,

a falsa bolha do conforto engarrafado

todo mundo que pode foge, compra

embaralha, mas não escapa

escapar para onde?

fluxo selvagem,

atmosfera com enfizema pulmonar

caminhões ligados rasgam o brasil

comprometidos com nossas segradas mercadorias

lutando contra o tempo

pra não dormir no volante,

a carne precisa de estimulante.

Pedágio, IPVA

preços extorsivos

menos ferrovia, mais rodovia

quase nada de transporte fluvial

até quando o brasileiro vai se calar

ou compreender?

Baco Trôpi Renton
Enviado por Baco Trôpi Renton em 05/11/2020
Reeditado em 06/11/2020
Código do texto: T7104816
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