ANTEVISÃO

Acendi um cigarro e desliguei a TV.

A fumaça subiu sinuosa

enchendo a sala o mundo.

Sem estardalhaço

eles chegaram montando anos futuros

e pararam em minha frente,

olhando-me com ternura...

Desmontaram e sentaram ao meu lado

que, sem entender, estava espantado.

Ele, homem, deu-me um forte abraço,

mas não me beijou o rosto,

o que ela o fez, após acariciar minha barba

com as suas meigas mãos de donzela...

Estupefato, quis falar, raciocinar...

- Meu Deus, como é possível...

Quis me situar no tempo, no espaço,

e não havia tempo ou espaço,

só um céu azul lá fora.

Após segundos, ante meu espanto,

disseram em uníssono:

-Viemos devolver os teus sonhos...

Do bolso dos jaquetões

(ambos usavam jaquetões azuis)

tiraram rotos sonhos,

irreconhecíveis sonhos desbotados

e depositaram aos meus pés.

Devolveram também algumas esperanças

que, assim como os sonhos, de tanto tempo

estavam amareladas.

Ainda atarantado, tentei recolher do chão

as sobras dos sonhos e das esperanças

mas minhas mãos fecharam-se vazias

pois de tudo não restara senão poeira

que o vento apressou-se em espalhar

no ar...

Abri a boca. A garganta sem voz...

O coração batia descompassado.

Minha mente toldou-se, entrou em turbilhão...

Eles continuaram:

-Temos nossos próprios sonhos,

nossas esperanças e novos planos.

- Somos apenas teus filhos e teus amigos

mas não somos teus – propriedade.

- Somos amizade e respeito

mas livres.

- Somos cada um.

- Somos teus irmãos...

O telefone tocou.

despertei.

Na rua eles cantavam com as outras crianças:

...Ciranda, cirandinha

vamos todos cirandar...

O cigarro apagara no cinzeiro

e não havia fumaça na sala.

Lá fora ainda o mesmo céu azul

e na minha mente ainda permanecia

as suas últimas palavras:

...teus irmãos, teus irmãos...

- Alo! disse eu ao telefone...

Belém – Agosto de 1981

Para Flávia e Marcelo, com meu afeto.