Longe de Mim

Estava ali, com meu corpo todo, ao lado das coisas frias que destarte me faziam sucumbir à procura do próximo abismo encoberto. Ali estavam também as mãos que não abençoavam nada, não afagavam, nem batiam, mãos de um corpo inválido para tecer fios de hissopo, ou linho e seda, a pena de um animal ainda virgem nas suas cores de ave nova. Era como a pele se sentia, tudo era úmido e frio até que o primeiro rubor da aurora se transformasse em cálida investidura. Mas se o corpo era meu havia de certo um entrave ao que chamava de "recolhimento monacal". O que era um absurdo. Só por estar ali, pensava poder imitar a voz insípida do monge quando este recita versos talmúdicos. E então gargantear loas ao meu estado de espírito que é de um escuro galo preto empalado. Nada mais me comove. E, não obstante, onde estou? Caído sobre a terra dos antigos rivais dos mouros? Ninguém vê mas do outro lado há um corpo em transe. Subira e descera, ao lado de coisas frias. Mesmo assim no rebojo precipitara sua própria secura sobre a voragem de quem não o vira. Mas quem, senão eu mesmo? Senão minhas coisas, meus olhos, minhas parcas palavras, meu devaneio e minha sombra? Era ali que me encontrava. Naquilo que não posso falar pois além de desesperado terminaria destarte esgarçado. E então tudo faria sentido e de súbito se perderia. Como então fui parar ali? No beco entre a solidão e a lascívia. "Desperatis sub iugum ab ira est servatum." Sob camadas profundas de um zêlo impuro. Ali era eu, de fato, com minhas trevas e meu raio esplendoroso. Todavia, olhava sem alívio, sem pressa e, por fim, arrebatado, tão longe eu estava de mim.

Silvano Gregorio
Enviado por Silvano Gregorio em 27/02/2021
Código do texto: T7194736
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