Lembrança do Agora
É engraçado isso de se apaixonar por alguém. A gente conhece a pessoa há séculos e ela
é só mais uma pessoa, aí de um dia pro outro os nossos olhos se cruzam. Segundos! Que
duram uma eternidade. Aquele sorrisinho no canto da boca. E uma pergunta pairando no ar.
Você sente isso? E depois mais um monte delas... É coisa da minha cabeça? Estou
imaginando de novo? Me machucando de novo?
Era só mais uma tarde na casa de uns amigos, todos rindo, cantando, vivendo.
Um daqueles momentos em que enquanto você vive já se percebe o quanto é especial e
único. Foi quando em meio ao calorzinho daquele tempo, te vi.
Claro, já o fizera milhões de vezes, por mais que já não me lembre mais da primeira. Suado
no jogo, triste com notas feias, cansado no trem, risonho na festa, feliz no churrasco. Mas,
agora...
Dessa vez minha visão fez meus olhos se conectarem com meu coração, que entrou em
descompasso nas suas batidas e mandou minha temperatura aumentar levemente.
Vi uma camada totalmente nova em meio a esse rosto antigo na minha vida e memória.
Vi um sinal. Vi um sinal?
É isso mesmo? Era isso mesmo?
O descompasso da minha mente diz que sim.
Parece loucura, mas estou arrepiada e sorrindo aqui só de lembrar de todas essas
sensações. Até que sinto chegar devagar mais uma sensação que tive naquele dia, ela vem
de mansinho como alguém que se aproxima do lugar onde vc está se escondendo no pique
esconde, e me pega de surpresa. Me assustaria se não fosse tão familiar. E meu coração
quentinho, gela.
O gelo que me deu quando você falou comigo...
"Não sei se você reparou nas mudanças que tem acontecido comigo." Que tipo de
declaração começa assim? Ainda não sabia o que estava por vir, mas já dava para sentir
uma tensão no ar. Nem reparei no frio na barriga que aquela frase me deu.
"Eu tenho escutado histórias e ouvido canções que me levam a pensar sobre onde eu vim e
quem eu sou." Meus neurônios não conseguiam processar muita coisa.
"E sobre quem eu quero ser, as coisas que quero fazer"." Pura confusão nos meus
ligamentos. Pura confusão!
"A primeira delas é que..." TELA AZUL.
"Deixa eu para você dizer que te amo e que eu penso em você o tempo todo." BUG TOTAL.
Eu não sei dizer se eu pensei um milhão de coisas ao mesmo tempo ou não pensei em
nada, lembro do frio na barriga! Na verdade, devia ter frio e tremor e calor e alegria e medo
e apreensão e um monte de coisas antagônicas ao mesmo tempo dentro de mim. Lembro
de sorrir, e em algum momento me perguntar o que eu devia dizer. Mas não sei dizer se
tudo isso durou 30 minutos ou 30 segundos.
Talvez, se apaixonar seja comparado com o
que eu sinto agora, existe frio e calor dentro de mim, lembranças e medo do futuro sem
você, gratidão por termos nos escolhido naquele dia e novamente termos nos escolhido ao
longo desses 50 anos juntos. Eu sei que você não pode me ouvir, sei que esse é um
discurso sobre nós e em sua memória, mas é mais para os outros do que de fato pra você.
Mas a parte sua que passou a ser parte de mim também vai ouvir, assim como a parte
minha que passou a ser parte sua vai sempre sentir que algumas coisas são eternas
mesmo que tenham começado sem explicação e terminado sem uma razão. Algumas
coisas valem a construção.
E como vale estar aqui construindo esse casamento com você.
Ter visto seu rosto e corpo mudando, envelhecendo.
Comprar e vender aquela casa imperfeita dos sonhos, sem jardim na frente.
Dançar as músicas lentas e psicodélicas que Deus nos deu para dançar, literalmente ou
não.
Ser sua maior, pior e mais fiel conselheira imperfeitamente perfeita.
Todas piscinas de choro e todos os decibéis das gargalhadas.
Benhê, eu sei que morrer não é algo que você possa fazer ou não. Eu sei que essa sua vida
não é sua, tu me lembrou disso todos esses anos...
Mas, por favor, não morre agora.
Benhê, me escuta.
Temos ...
tanto ainda...
para viver juntos.