Meu monstro, Soli

Meu monstro se chama Soli. Gosta de caminhar a passos muito muito lentos, geralmente em direção ao passado.

Nos últimos tempos, nos ausentamos do mar. Na última vez, Soli caminhou por muitos metros de raríssimas casas, pensando em quem ficou para trás. Arrastando-se sobre a linha entre onda e areia. Soli não assume, mas só confia no mar. Andava tão triste quanto as ondas rasas, e cada vez que elas mordiscavam seus pés, ainda que mornas, sentia uma estranheza.

Um céu enfeitando a vontade do corpo. Queria aquele moço do sonho ou que pelo menos ele respondesse aos sinais das estrelas escolhidas a dedo durante as madrugadas. O silêncio do moço mexeu tanto com Soli, que ela já quase não lembra das coisas. Adotou para si a cor que desconcerta os dias.

Somente diante do mar, Soli encontrava a si mesmo. Sentou na areia e me perguntou se era assim que acontecia, a frustração a decepção, a tristeza que se demora, e eu, que nunca tive respostas prontas, só pedi para que ela ouvisse melhor o vento. Esse que tinha um jeito brando de arrepiar os pelos.

O vento causava em Soli a permissão das lágrimas. A mesma consequência de quando certa vez ouviu Emily Watts cantar “lá vie em rose”. Talvez chorar acomode a alma. Antes de cumprimentar as dores de Soli, o vento tirava uma gracinha rodopiando as espumas das ondas que morriam.

As lágrimas, por sua vez insistentes, desenhavam no rosto de Soli, o nome de toda espera. O amor que não finda. Ao ver aquilo tudo, brinquei com ela: “vamos contar até três e gritaremos o nome desse moço, mas gritaremos de um jeito tão forte, que o mar terá pena de ti. Pronta? Um...dois...três e” DISSEMOS O NOME por segundos até o peito quase explodir.

Por sorte ninguém via o verdadeiro rosto de Soli. As pessoas focavam no meu. Máscara bem cuidada. Quando Soli cansou dos desenhos das lágrimas, perguntou por quanto tempo a espera a afetaria. E eu, que ainda não tenho respostas, abracei Soli e a abraço toda noite, abraço as lembranças de quando andávamos afoitas e sorridentes em tempos de alto-mar, de quando derrubávamos barcos aos som de músicas mais condizentes.

Meu monstro quase não fala, isso cabe a mim. Tem medo de aborrecer as pessoas com as corrosões dos sonhos e dos desejos. Mas Soli tem um jeito muito próprio de me ensinar sobre a vastidão, sobre o desconhecido, sobre o que não posso controlar. Conversamos muito ainda que sem palavras.

Soli sabe que por hora, precisamos estar de pé ainda que à deriva. Soli sabe que eu me alimento de saudades. Obesa de desargumentos. As nossas lacunas são as mesmas. A diferença é que quanto mais finjo-me terra, mais o meu monstro se assemelha ao mar. Horizonte, infinito, como a valsa entre as luas.

Lis F Nogueira
Enviado por Lis F Nogueira em 21/03/2021
Reeditado em 21/03/2021
Código do texto: T7212630
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