Até o Ônibus Chegar

Bloco maciço de cimento. Com tamanha graça, paira defronta a mim no ar. Suas linhas são retas. Seus ângulos, obtusos. Um obelisco, deitado sobre a movimentada via pública, arqueando tudo embaixo. Atrás do monumento, apenas a noite. A silente noite. A noite estranha, que deixa um gosto amargo em nossas bocas. Ela jaz no horizonte junto com o cinza-escuro da poluição atmosférica. Por debaixo, ondas eternas de caminhantes soturnos passam, como um rio ou riacho. Essas pessoas logo me rodeiam. Tudo agora é podre e fétido. Já se é quase impossível distinguir o que é real daquilo que a vida falseia. O quadro pincelado não é mudo nem estático. Ouvem-se tudo: o marchar dos passos, as rogativas dos pedintes, as baforadas que teimam golfar ao meu redor. Eu estou impregnado de nicotina. Mas, acima de tudo, ouço com clareza desigual a dor e o abatimento de cada um de nós. São como afinados instrumentos de uma orquestra. A sinfonia da morte. É no seio dessa decadência humana que passo uns bons vinte a trinta minutos, dos quais absorvo ao máximo aquilo que se vê, mas ninguém ousa verdadeiramente enxergar - que é a insignificância de existir para tão logo acabar. Tudo isso até o ônibus chegar.

Necrófago
Enviado por Necrófago em 10/06/2021
Código do texto: T7275886
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.