À flor da pele

Respira fundo e vai embora como se o seu mundo a sucumbisse e a fizesse sair do eixo. Olha o horizonte e vislumbra suas escolhas, contempla sua alma e se apavora. Não sabe se rir ou se chora. O que deseja é sumir dali, sem ser percebida.

Olha para trás se reporta as memórias de outros momentos. Começa mais uma vez a questionar-se quem era e onde está o seu sorriso e o seu olhar, agora, pensa que perdeu em algum lugar. Tropeça em seus próprios lamentos, levanta e mergulha em direção a rotina que a apaga diariamente.

Corre para pegar o ônibus, enquanto os pensamentos borbulham em sua mente, mas ela olha para frente e segui.Pega o ônibus,

alucinadamente, descontente com quem se transformou, com a terrível sensação de quem nadou, nadou e morreu na praia.

Ela está cansada, fadigada, consternada sem saber onde vai parar e pensa consigo mesmo que deveria mudar. Segue sua viagem, encosta a cabeça na janela e de repente percebe um pássado parado no fio de energia e por um momento desejou ser aquele pássaro, viu nele a liberdade de voar, de escolher ficar na corta bamba, sem estabilidade, mas livre para seguir qualquer caminho, mesmo sozinha.

A gente nunca sabe onde vão dá as nossas escolhas, meu desejo agora é congelar essa cena, eu não queria contar essa história.

No entanto ficaria em dívida se por aqui eu parasse já que tem tanta coisa a ser dita.Então espero que você compreenda o meu receio, porque essa história começa lá no feliz para sempre.

Depois do feliz para sempre pouca coisa se sabe, é fato que a gente fica com a imagem de um lindo casamento entre um casal apaixonado, imagino que agora você consegue pensar na cena da noiva jogando o buquê e o carro com um monte de latinhas penduradas na parte de trás , mas depois dali pouco temos notícias, pois bem o que sabemos é que após o casamento eles seguem sua vida normalmente, felizes juntos, parceiros acreditando que amam-se. Tudo é aplausível naqueles primeiros dias. Ela vivia um conto de fadas, estava leve como a brisa, voando como uma gaivota feliz por ter escolhido e planejado aquela vida.

Ah!! O feliz para sempre é um lugar desconhecido, diria que é um lugar lendário e que nós mulheres temos o péssimo hábito de sermos "candidianas", otimistas demais para acreditar em mudanças repentinas. Pois bem, como prometi continuarei a história.

Com o balançar do ônibus, ela acorda e percebe que está chegando a sua parada, se organiza e desce em direção a sua casa. As preocupações de quem precisa dá conta de tudo porque escolheu, e é assim que tem que ser, a sufocam e a desanimam.

Olhando ela daqui,sinto a aflição exalando em sua pele, e ao mesmo tempo questiono-me quem foi que inventou essa história de que nós somos super mulheres e damos conta de tudo. Fora isso temos que lidar com o machismo estrutural, há gerações o preconceito se reinventa e nós precisamos responder as suas espectativas?

Bem, ela seguiu sua jornada, deu conta dos serviços de casa e esperou que ele chegasse para descançar. Era um casamento recente, mas a empolgação do namoro se diluia e evaporava a cada encontro entre eles. A frieza era a base do diálogo, da comunicação, não sei se era possível reconhecer gritos e xingamentos como comunicação. Ele a despresava e desreipeitava a cada ação em direção a ela, ele roubava sua dignidade. Ele se enfiava na sua caixa do nada e se limitava a reclamar de tudo que estava ao seu redor.

Diante disso ela se desmonta, lembra-se que não escolheu aquele espaço, que não queria ficar.

Um dia, entre tantos, gritou aos quatros cantos da casa, exigiu que fosse tratada com um mínimo de dignidade. Ela queria ser feliz para sempre como os contos previam, queria viver a liberdade do passáro que vira, queria pausar na corda bamba sem qualquer estabilidade, queria sentir-se livre de verdade, porém naquele dia foi silenciada e chamada de louca após receber um tapa no rosto por questionar sua liberdade.

Lembram-se quando falei que insistimos em ser otimistas e acreditamos em mudanças repentinas?! Pois bem, ela acreditava...e afirmou que ele fez por um momento de raiva, ele não faria novamente, embora fosse a décima vez que isso acontecera, mas ele mudaria. O desejo de viver estava a

à flor da pele, então jogou-se em sua rotina fatigante, movimentada pelo desejo de mudar, mas não encontrou força. Dava várias explicações por conta dos hematomas por vezes no olho, outras no braço, muitos nas partes do corpo que as roupas não deixam mostrar, sem desculpas já não sabia o que falar. O ciclo vicioso de agressão começou a se ampliar. E ela desejou não sair mais de casa, porque não sabia mais o que falar. Privou-se de si própria, evitou questionamentos, assumiu que não tinha jeito, pensou que já era tarde.

Lembrou-se do passáro e desejou sua instabilidade livre sobre a corda bamba. Esqueceu de quem era e já não sorria, apagou-se dia a dia. Deixou o ônibus passar e decidiu que não ia para lugar algum, porque acreditava que estava perdida no caminho da cidade lendária do feliz para sempre, ela estava tão preocupada em manter o seu castelo que não lembrou de arquitetar sua sobrevivência.Foi agredida friamente, espancada até a morte, no lugar que chamou de lar. Foi por várias vezes torturada e humilhada por quem chamava de companheiro.

Ela? é Ana, é uma moça que está aí dentro nesse momento, você não a percebeu ainda, mas ela existe e tenho certeza que a reconheceria em qualquer lugar. Ela é mulher e precisa lutar para sobreviver nesse lugar onde você está agora. Sei que é difícil se colocar no lugar do outro, nesse caso da outra, mas no fundo, na essência somos uma só. Não exima-se de lutar, Ana está em nós, estava em muitas que perderam a batalha, mas nós estamos no agora, ela vive dentro da nossa essência, não limite-se a julgar os motivos que levaram a perder a batalha, se é que ela realmente perdeu, ou realmente batalhou...esse querra tão desleal...nesse momento ouço a canção "triste, louca ou má" (Francisco el Hombre) e penso na força que nós mulheres temos e ao mesmo tempo compadeço-me das Ana's, as encontro dentro de mim e sinto-as como se gritassem à flor da pele para lembrar-me da luta diária para sobreviver...nesse mundo onde mulher é morta pelo simples fato de ser mulher.

Driely xavier
Enviado por Driely xavier em 14/07/2021
Reeditado em 28/07/2021
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