Poética - O nascimento de Afrodite

"O céu teve eviscerado teu mais lúgubre amor; e na castração elegíaca de uma tempestade, quedou as entranhas prolificas de sua dor por entre as profundas águas desérticas da existência.

Lá, transferiu-se para as espumas do nada, e deixou-se a modelar na ríspida e solitária ressaca do mar, que embebido pelo êxtase, fundiu o sangue celeste ao sal das recordações.

As entranhas do céu, logo dançavam em meio ao redemoinho tremeluzente e temperado pelas estrelas. Enquanto a realidade se contraia, eu moldava a minha própria fisiologia, fazendo da vida o meu próprio espaço de criação."

Quando pela primeira vez uma parte do céu misturou-se ao mar, a minha alma rasgou a superfície das inibições, pois já não existiam divisões entre ela e o meu corpo ou entre a vida e a morte.

As galáxias formavam redemoinhos em meu peito, e a pulsação da vida rompia junto ao quebrantar das ondas (...)

De tamanho caos infeccioso, emergiu Afrodite: A pulsão atmosférica que outrora eu reprimia e que me foi roubada quando nem existia.

Ela arfou sobre o próprio parto e fitou com desdém a dor que pulverizava-se nas ondas. Teu olhar doravante, emana que és toda certeza de si, és ímpeto profano que afoga a finada nostalgia e afana a ruptura duma sina.

Vênus reluz em sua volúpia esculpida de mim; deita-se nua sobre o tépido amparo de quem nasce de si, e já não choras ou geme ao cair do céu do qual foi rasgada por seduzir os serafins mais puros da liberdade.

Ela apenas deixa em seu corpo o ébrio contorno da criação.

E escapa a qualquer porvir premeditado (...)

Ah, quando Afrodite emergiu do mar, Dionísio regava os corpos com vinho, e a orgia das cores dilatava o aroma obsceno das rosas até floresce-las em êxtase e criatividade.

A existência humana munia-se de vitalidade, e a própria vida se reinventava através de uma força incapaz de ser contida ou calculada.

Quando Afrodite emergiu do mar, muitos jaziam impregnados pela mais crua expressão da alma, e então fitavam aqueles que amavam e balbuciavam:

- "Como hei de ir para o inferno por amar-te se ao olhar no fundo dos teus olhos, eu enxergo o paraíso e a pureza de todos os anjos? (...) "

Meu amor és compromissado com todas as formas de ser. És substância torpe e feminina, que alça a venérea evasão das sombras do desejo. És elevação divina e cristalizada por belezas que dissolvem meros corpos e tangem a maestria do intelecto.

E de tudo, Afrodite és a minha implacável pulsão condensada em mistérios; e tens por amantes, todas as coisas que luzem-me a alma.

És a beleza excomungada que formou-se de um redemoinho feito com todos os meus suicídios;

Eles agora circulam, fracassados e escondidos no mar da eternidade. Eles volvem, espumando a mais pura manifestação da beleza ao se metamorfosearem na hemorragia de uma queda.

Desde então, através do mar de experiências, se é capaz de mergulhar nas várias eternidades afrodisíacas da vida.

- Letícia Sales

Instagram literário: @hecate533

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 13/11/2021
Reeditado em 30/05/2022
Código do texto: T7384835
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