Poética - Entre Eva e Lilith

"Em verdade vos digo que a realidade é como a lua, pois nunca se altera e tampouco possui luz própria. O que muda é a parcela da realidade que a nossa consciência é capaz de alcançar, alterando assim, o ângulo da percepção no céu da condição humana."

No fino e hediondo portal das ilusões, eu posso escutar os murmúrios débeis de uma mulher definhando em seu jardim estéril.

A sua voz é oca e nebulosa como o juízo final, pois permeia todos os canteiros da minha alma e julga cada partícula do meu ser como se fosse o meu último dia na terra (...)

Ah, olhar em seus olhos é análogo a revisitar o reflexo de uma abstinência áspera mediante os espelhos da vida.

A mulher refém de uma ínfima superfície refletora de luz, priva-me de viver e se afunda na polidez de uma lâmina deturpada.

Conforme eu forço as retinas para resgata-la de seu jardim, o corte afunda nos confins intangíveis da minha alma.

Aos poucos a mulher descama em uma falha fertilidade regada a sangue, desintegrando a minha consciência nas distorções dessa imagem muda e infértil.

Ora, o que és o espelho, se não um portal enviesado por tudo o que fizeram-me acreditar que sou eu?

E já não posso amar a débil mulher que reflete-se no espelho, então rastejo entre as suas chagas enquanto esfacelo a sua forma até que as correntes da vida se quebrem (...)

"Na noite em que todas as deidades dentro do meu coração são abortadas, a lua encontra-se em seu apogeu.

Na noite em que os deuses morrem em minhas esperanças, a falta de um comprimido torna oblíquo o meu crânio e vivo os meus instintos."

Dentro do espelho, uma imagem abstrai enquanto progride sua orbita em meu entorno para que aos poucos uma nova face ganhe luz.

Dentro dela o fruto lírico das descrenças germina as sementes de um novo amanhã.

Ah mulher, tua lírica outrora me distorceu e teu amor foi um fruto da rejeição narcísica.

E inda que as asas da solidão forneçam-me o poder de me amar incondicionalmente até que uma chuva de arcanjos quede toda a santidade do mundo.

Nada é capaz de romper

nosso cordão umbilical enfermo,

esse que liga-me ao jardim da mulher que amo em espasmos de ódio criativo.

- Letícia Sales

Instagram literário: @hecate533

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 07/12/2021
Reeditado em 20/07/2023
Código do texto: T7401932
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