minha aldeia

Nasci num lugar outrora denominado Forquilha,
Cantado em verso e prosa, de Castro Alves ao gênio Euclides da Cunha, imortalizado na voz de Luís Gonzaga;
Onde Lampião se escondeu de seus algozes e o visionário Delmiro Gouveia anteviu com olhos de águia que daquele abismo brotaria energia;

De onde o general Dutra lançou a pedra fundamental daquela que seria a primeira usina, em que milhares de operários deram seu suor, sangue e suas vidas para erguer do nada uma grandiosa obra de engenharia que se traduzia num grande desafio - domar o rio e extrair dele todo seu potencial hídrico;

Vim ao mundo em 1968, quando entrou em funcionamento a terceira e a quarta usina, e enquanto o mundo explodia em protestos, guerrilhas e barricadas, nascia eu, em Paulo Afonso;

Paulo Afonso parafraseando Euclides digo: tu és a Bahia no que há de mais excepcional e selvagem;

Passei grande parte de minha infância tentando decifrar o que me dizia aquela garganta cavada pacientemente pelo São Francisco e seus imensos paredões revelando as entranhas da terra;

Queria ir além de ti, mas era repelido pela barreira intransponível de teu cânion profundo.

Tua natureza selvagem provocava uma profusão de sensações e de sentimentos,

Maravilhava-me com a queda majestosa da cachoeira imortalizada nos versos de Castro Alves:
" (...) Oh! névoa! Eu amo teu sendal de gaze!...
Abram-se as ondas como virgens louras,
Para a Esposa passar!...
 “As estrelas palpitam! — São as tochas!
Os rochedos murmuram!... São os monges!
Reza um órgão nos céus!
Que incenso! — Os rolos que do abismo voam!
Que turíbulo enorme — Paulo Afonso! (...) “

O São Francisco foi o meu primeiro mar achava-o misterioso;
A caatinga meu deserto, uma paisagem fora de mim que me sufocava e angustiava só em avistá-la;

Paulo Afonso: nenhum sinal do mundo exterior além do teu abismo estava espremido entre a chapada e o teu salto magnífico;

Pelas manhãs me dirigia ao colégio que ficava no acampamento, pegava o "papa fila" na praça da feira (uma caminhão FNM que "carregava um ônibus no seu espinhaço)

Muitas vezes subia até o morro onde ficava a Igreja de São Francisco, tentando compreender o que seriam aquelas imensas torres de aço erguida lá adiante próxima a usina;

Vivi na Vila Operária, estudei na Escola Parque e no Adozindo Pinto;
Quantas e quantas vezes perambulei pelas ruas desertas e tristes da vila operária em busca de algum paraíso perdido.

Como a visão do Touro e da Sucuri me assustava;

Lembro-me que muitas vezes descia a Rua do Sossego em direção a Rua Luís Viana Filho, número 22, onde morava a minha família, e  aos domingos escutava o som de Raul Seixas vindo da radiola do vizinho “... ô, ô  seu moço do disco voador me leva, por favor, pra onde você for...”

De minha rua avistava o prédio do INPS, ao lado acontecia a feira aos sábados, vez ou outra escapulia e ia passear, ficava a  observar quinquilharia ali à venda, panelas de aço, de barro, bandas de bode seco exposto ao sol, inhambus e arribaçãs, farinha de Itabaiana, peixeiros amolando facas e oferecendo crumatás, taíras, açougueiros a esfolar carneiros, bodes, vendedores de umbu, murici, jaca, jerimuns, violeiros tirando versos;

Ou ia além da feira, atraído pelas explosões de dinamite, em direção a construção da barragem e avistava lá em baixo, caminhões pesados, tratores, um formigueiro humano trabalhando em sua escavação; 

Lembro-me da morte do padre Mário Lourenço e o clamor que ela provocou na cidade,

Na década de 80 embalado pela música "Festa do Interior" passei férias na casa da irmã Dinha; onde encontrava a galera, Tico, Gal, Tiquinho, Guel, Leny, Marta dos olhos verdes lindos da cor do rio, à noite saíamos em bando a caminhar pelas ruas desertas da Vila Operária até o Belvedere e lá vertíamos garrafas e mais garrafas de vinho vagabundo;

Paulo Afonso, embora tenha deixado você aos nove anos de idade, carrego em mim um pedaço imenso de ti, por muito tempo fostes a minha aldeia, minha única aldeia, nunca a esquecerei, faz algumas décadas que não te avisto, mas as lembranças que tenho continuam intactas na minha retina;

Como eu era puro meu Paulo Afonso, você me bastava...

 
Labareda
Enviado por Labareda em 17/11/2007
Reeditado em 04/01/2017
Código do texto: T740428
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