NAUFRÁGIOS DE UM EU AFOGADO

 

Enquanto eu naufrago pela última vez em algum dos sete mares que me transbordam, o único pensamento que veleja minha mente é o medo de sobreviver ao soçobro da embarcação. Porque eu já tentei submergir e já tentei sufocar a totalidade de terra que constitui meu corpo, mas eu falhei em me estrangular os próprios respiros. Meu casco é apenas destroços das vísceras de outros barcos, um navio de Teseu em que não mais se sabe a nascente de cada pedaço. Será isso meus restos? Ou terá o mar me reconstruído de cascos alheios, os quais se assassinaram e se deixaram corroer pelo sal muito antes que eu? É que neste momento a água invade os buracos do meu barco, percorrendo meus mares navegáveis, agarrando meu pescoço com mãos molhadas e escorregadias, estrangulando-me até que as últimas bolhas deslizam pelos meus lábios amadeirados. E eu, de olhos abertos naquele oceano, permito que a morte se ancore aos meus órgãos, levando-os consigo porque tudo que eu mais quero é me afogar nesse azul sanguinário. Mas como uma criatura que busca o próprio fim no lugar em que teve início, cada vez que eu me liquido em naufrágio, minhas velas se contorcem até estarem novamente arqueando suas costas para o toque devasso do vento. E eu tentei, tantas vezes eu tentei, naufragar-me nas ondas e me enterrar nas areias de um subsolo intocável, onde eu poderia me alimentar de um deserto encharcado e me embriagar de sal até os sentidos beijarem a overdose. Eu tentei, mas a água sempre me curou, lambendo minhas feridas e preenchendo minha dor com a tranquilidade de um silêncio vazio e oco do fundo do mar. E eu tentei e agora continuo tentando, mesmo sabendo que, quando finalmente me cegar com a saliva salina e fechar os olhos implorando pelo meu naufrágio, as ondas me devolverão à beira-mar, mais viva do que nunca. E eu tentarei, enquanto a água não cansar de beijar a areia, eu tentarei me naufragar nos oceanos, até que de tanto morrer, eu aprenderei a ser mar. Até não restar mais nada a não ser mar.