Doppelganger

Sinto-a roçar nas paredes,

escura e indelével como a sombra que o meu corpo projeta.

Todas as noites ela encontra formas de se materializar, insegura e maligna, ela transborda de meus anseios.

Ela que tem a minha idêntica face,

fez-se no acúmulo de tudo aquilo que negligenciei em mim.

Num canto escuro do tempo, os resíduos da rejeição se juntaram e a substancializaram.

Quando escrevo vejo-a a me olhar;

não gosto do espelho que as palavras destilam no interior de si, eis que através delas enxergo o meu rosto refletido e nem sempre ele é bonito.

Dentro de mim, milhares de coisas implícitas roncam, noturnas e frígidas.

Quero gerar todas elas, mas juntas, elas já formam outra de mim - taciturna e má.

Tu que me lês, estás a me parir de dentro do teu íntimo ao interiorizar as minhas palavras e permitir que elas fecundem o seu âmago.

De dentro de ti algo sairá com a força da minha gênese. Terás parte do meu fenótipo, mas será inteiramente teu.

Na maiêutica socrática, eu forço-te a gerar ideias. Na maiêutica socrática, eu te induzo a traduzir o choro que sai de ti, desamparado.

Serei a parteira dos teus anseios, mas quem irá efetiva-los és tu.

Tu terás que nutrir teu choro e ensina-lo a devida prosódia de oralizar a existência.

Igualmente através de ti, eu realizarei os meus instintos - a libido artística que atravessa o meu ego e expressa os meus impulsos (...)

A mulher errática que estou a parir;

É inconsciente de si própria, remenda-se em pedaços desconhecidos e jamais deixará que eu a toque por inteiro.

Ela aperta o mundo em seus olhos, e me retrai até que eu já não consiga mais sair de mim.

ininteligível, ela prende a respiração e deixa de oxigenar as minhas ideias; sem ela não vivo, sem ela não posso ser eu.

Quero arranca-la das profundezas;

Quero conhecê-la.

Quero domestica-lá.

Ela, todavia, é implacável.

Projeto-a em seu trono de argila - ela é ardilosa e carrega a sabedoria subterrânea.

A simbiose ancestral nos faz uma só. Alimento-me de suas inspirações, e ela se alimenta das minhas inquietações.

Tudo o que um dia aspirei serviu para desenha-la no interior de mim.

Até que eu encare a minha face escura e empurre os embriões de quem sou à luz da consciência,

permanecerei a impedir que o vir a ser configure a face que almejo ter.

- Letícia Sales

Instagram literário: @hecate533

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 23/04/2022
Reeditado em 27/04/2022
Código do texto: T7501560
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