Ah, meu amor.

Às vezes, tenho vontade de dilacerar o meu rosto. Queimar o meu corpo e deixar que a gordura sirva de combustível para as chamas. Às vezes, odeio-me por poder deitar em uma cama e dormir. Me desligar, como se não houvesse nada de errado com o que sou.

Às vezes, sinto a repulsa dos olhares femininos e o nojo dos olhares masculinos. Não sabem que, por debaixo dessa superfície, mora uma pessoa sensível. A natureza me dotou de sensibilidade e me fez, com a rudeza do meu aspecto, corolário da insensatez. Peço desculpas.

Às vezes, muito frequentemente, quero chorar. Mas faltam lágrimas, faltam razões objetivas, me falta a verdade implícita que todos sabem, mas finjo não saber. Sou um amontoado do que não foi, do que denominam de “resto”. Se eu fosse apedrejado, tudo bem, acontece que não existo.

Sei que contribuo para viver no estado que me encontro. Não me cuido, persigo a morte em cada passo e, ao mesmo tempo, me afasto, temendo o desconhecido. Não sou o homem de ação que todos exigem e, por isso, não posso receber seus méritos. Sei que há justiça no meu infortúnio.

Sei também que as palavras me sufocam, são tentativas melancólicas de contornável o incontornável, aniquilar o indestrutível e oxidar o inoxidável. Meras repetições, pleonasmos e hipérboles que enjoam. Tudo em mim é um enjoo sem vômito. Tudo em mim é concepção sem propósito.

Sei que a vida não me reserva os louros da normalidade. Gostaria de usufruir de mais relações, mais prazeres, mais vantagens e histórias de desejos e coragem. Sou um tolo por admitir que a volúpia me atrai? Afasta-me o conhecimento, quero a lisergia dos instintos primários.

Mas ando tão quieto, por vezes, vítima de rompantes impiedosos. Sigo falando, falando e falando, como se discursando para pessoas interessadas. Acontece que minha boca não se move. Meus olhos fenecem. Minha tez empalidece. O silêncio verte de medo e escuridão involuntária.

Mas ando tão cabisbaixo, cético em relação à paixão. Ouço os amigos contarem aventuras e quantificar o qualitativo. Um único homem é capaz de semear tanto interesse e cultivar tantos olhares positivos de consenso? Não fui agraciado, sinto vergonha e sei que eles sentem também.

Mas ando tão esperançoso, minha esperança é incomum. Sigo carregando uma pedra, maior que a de alguns e menor do que a de outros. Tenho consciência de que a pedra morrerá comigo. Abraço meu destino e me curvo ao tempo, com dedicação. Olho ao redor e lamento por tudo, não sou um exemplo.

Ah, meu amor. Se amar bastasse... quanta tristeza o futuro nos guarda, tendo em vista que conhecemos os motivos ocultos da cinestesia mórbida e selvagem dessa gente? Somos diferentes? Certamente não. Na verdade, estamos até mais sujeitos ao que repreendemos. A inveja nos consome.

Ah, meu amor. Se teus lindos olhos fossem a única lente desse mundo monocromático... quanta beleza eu veria nesses sepultamentos cotidianos, nas falhas presentes na pele, no rosto, no jeito, no olhar e no comportamento que me abusa. Quero extirpar seus belos olhos.

Ah, meu amor. Estamos juntos e, ao mesmo tempo, sonhamos com mundos diferentes. Sou feio, inflexível, perverso... ignorável, insignificante... neutro. Tentei mentir, dizendo que essa gente toda me odeia. Acontece que essa gente não me conhece, e não conhece a existência da possibilidade de me conhecer.

Ah, meu amor. Se ao menos soubesse o meu nome ou lembrasse do meu rosto. Sei que não sabes, tudo bem. Sei que não lembras, tudo bem. Tudo isso, na verdade, é feito para que eu me cure, temporariamente, dessa dor crônica. Logo vou sumir e nem perceberão que passei por aqui. Eu prometo.

Eduardo Becher
Enviado por Eduardo Becher em 24/05/2022
Código do texto: T7522534
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