O RELÓGIO MARCADOR DE PÁGINAS...

De repente, sem ser solicitada, ela me chegou ali , dentre tantas já postadas: uma antiga fotografia feita por mim, a dum meu cantinho personalíssimo, cenário de dentro.

Veio ela à tela inacessível do meu celular, relembrada pela memória duma rede social e a imediatamente navegar meus olhos a procura da sua datação.

Na epígrafe da postagem se lia "há nove anos" e eu paralisei meu olhar na tentativa de dar vida em tempo real àquela imagem tão fixamente em movimento, deveras acelerado dentro de mim.

A arte fotográfica me funciona como "tatuagem de alma" , assim, ao tocar o tempo pelas impressões nas fotos, meus sensores retinianos disparam emoções que, ato contínuo, buscam pela identificação das suas horas... num ato compulsivo desse meu inconformismo de não dominar as trapaças do tempo.

É como querer vencer o invencível e voltar para o impossível.

Ali registrada, curiosamente emoldurada pela vegetação dum verde fresco e abundante do mesmo jardim da pracinha de sempre, a antiga torre da minha igrejinha cor creme, cujo relógio marcava as horas duma aurora que ainda se acomodava no seio dum alto céu azul anil.

A imagem do relógio parecia me gritar as mesmas horas da poesia que sempre fica, a que nunca passa porque para sempre nos perpassa...

Nela, eram pouco mais que dez e meia da manhã, onde se via que o relógio da torre, há exatos cinco minutos, acabara de dobrar a meia hora de única soada seca, a nos avisar, sem piedade alguma, das já dez badaladas tão choradas pela passagem das tantas horas plenas.

Tanto quanto as fracções dos segundos, nove anos são uma vida e ,pela visualização da imagem, voltei a um aceso e pontual capítulo do tempo.

Então, defronte da tela do celular, a minha cena fotográfica tomou vida.

As cortinas do tempo se abriram com se com a tecnologia de realidade virtual ampliada.

Meus ouvidos dobraram juntamente ao sino da igreja para dar entrada à sonoplastia estridente das maritacas que habitam as palmeiras do verde interiorano, sempre tão genuíno e brilhante.

Acordei com o arrulhar das pombas no telhado.

Degustei todos os puros perfumes exalados na atmosfera.

O sumo das laranjas era o que mais exalava...ainda grudado nas minhas narinas.

O denso farfalhar das árvores altas me traziam à pele, sem nada em troca pedir, a brisa fresca que a noite recém passada dali esquecera de levar.

Sentei nas cadeiras pelas tardes nas calçadas...

Subi meia rua de aclive suave à casinha que nos abrigava. Era como passear pelo paraíso...

Passei pelas esquinas dos amigos da infância.

Ouvi seus chamados "de férias" vindos do outro lado da calçada, para jogarmos as "três-marias".

Pulamos corda e amarelinha.

Escutei as charretes batucarem pelas ruas calmas dentre algumas buzinas de automóveis perdidas lá longe.

Cumprimentei o seu Zé da lojinha.

Tomei sorvete de graviola na sorveteria da esquina.

Fui à quermesse de Julho, a da igreja congelada na foto, e recebi um correio elegante.

Subi na árvore da chácara, me empanturrei de jatobás e tive dor de barriga que logo passou com um benzimento.

Visitei as poucas ainda restantes amigas da minha avó, as que sempre me serviram café da fazenda com pão caseiro sovado a muque. Não existiria nenhuma recepção mais calorosa que aquela.

Fotografei um Sabiá na cerca de arame farpado e uma penca de andorinhas ancoradas sobre a fiação elétrica.

Nunca entendi como esses pássaros driblam todas as adversidades dos tempos para pousarem com tanta coragem, a despeito dos tantos perigos. Aprendi que é melhor se espelhar neles...e confiar.

Ouvi o tilintar da panelas que preparavam o almoço de mesa farta e plenamente habitada, já a sentir o odor das bolachinhas de baunilha no forno.

Esperei pelo belo e saboroso bolo de sobremesa, o da Isa.

Tomei banho de mangueira, de chuva, de enxurrada, tudo sob o perfume de terra vermelha molhada.

Abracei as tias queridas com força e tanto carinho talvez pelo intuitivo saber de que nunca se sabe quando serão as últimas vezes...

O trem apitou lá longe...na madrugada. O mesmo cujo farol, certa noite, ofuscou meus olhos na plataforma da estaçãozinha.

Nove anos fotografados ali, naquela fotografia, apenas o registro inacessível dos últimos tempos, antes do tudo que viria depois. Como se fosse uma chuva de águas divisórias a se derramar sobre a terra farta.

Quisera eu poder voltar os ponteiros do bem antes.

E, ao atender meu desejo, o relógio da foto mais uma vez dobrou bem alto dentro de mim.

Tão alto que voltei ao presente a confundi-lo com o toque do meu celular.

Horas idas...plenamente idas.

Delas de volta à cena real, vinda das cortinas já fechadas ao meu cenário fotográfico ali congelado.

Acordei num outro mundo, um que desconheço totalmente.

Sobre o instigante Senhor tempo:

Como pode algo matematicamente tão relativo ser visceralmente tão absoluto pela vida da gente?

Como pode um fenômeno, invisível e tão intangível, nos ditar os enredos quase nunca escolhidos?

Fotografar as horas, aprendi: eis a única possibilidade de algemar a passagem do tudo que não fica, embora insista em ficar.

É como se colocar "marcadores de páginas" num livro que apenas se abre dentro da gente.

Nas exatas páginas que correm para trás e voam para frente...sempre a nos registrar e a nos revelar novas histórias.

Um livro trancafiado no peito, cuja leitura mágica, livre e silenciosa, cabe somente a cada um de nós, em qualquer espaço e fração da eternidade" tempo".