OUSADIA

Pisou direito – os caminhos é que lhe foram esquerdos: como as janelas acidentalmente escancaradas pelos ventos em dias tempestuosos, assim como algo valioso, perdido através do bolso furado que há um minuto abrigava a mão tímida e distraída, ou como a realidade dormente nos olhos despertos.

Fez o que pôde (inclusive o que não devia). Inventou melodias para canções censuradas. Arqueou o dedo médio aos que se imaginavam superiores. Comeu o fruto da árvore proibida porque a sua humanidade tinha fome de saber. Pecou sob as leis criadas por seres maculados. Ousou existir já sabendo o preço desta empreitada.

Pelas ruas, os olhares zombeteiros sempre à espera de um equívoco. Os burburinhos sarcásticos dos que não se atreviam a existir também. As gargalhadas forçadas de quem se sentia invisível diante dele. Os homens com seus assovios malignos e maliciosos. As mulheres com o semblante duro, enrijecido pela habitual expressão daquelas pessoas que, mesmo a contragosto, correm na contramão do mundo. Ainda assim ele ousou sorrir, apesar do peso deste gesto e do preço cobrado pela afronta.

Nas escolas, no trabalho, nos bares, por anos contínuos, a voz dele vibrava solitária contra uma multidão indiferente às suas frases. Os transeuntes indispostos a fitar sua presença na calçada da normalidade. Quiçá, entretanto, ele não fosse de fato parte de algo padronizado. Por isso ousou viver, apesar da poeira ardida que cobria os seus olhos ante a morte de tantas ilusões.

Escreveu sua história com o sangue ainda morno do seu sentir visceral. Deu ao seu desapontamento o consolo de ser evolução. Irmanou-se com algumas almas esquecidas no beco escuro dos prazeres baratos e ocos. Ofereceu aos inimigos a delicadeza das flores nascidas por entre as reentrâncias das pedras contra ele atiradas. Chorou baixinho e escondido enquanto a perversa multidão esfacelava outros sonhadores. Aprendeu a pintar o rosto sem temer a crueldade dos desbotados. Coloriu-se por inteiro, deu vazão ao masculino-feminino de sua essência. Aposentou o personagem que não era. Perdeu o medo do espelho. Ousou amar no amplo sentido do que esta palavra encerra, apesar de manter no albergue do peito a reminiscência de quanto ódio injustamente suportou. Nalguns pontos da paisagem, as cicatrizes das violências às quais sobreviveu. O orgulho dos caminhos em que pisou.