Havia riso e correria

Havia riso e correria. Família que se apressava para ir passear. Era uma casa térrea na qual eu nunca morei, na qual eu nunca pisei, uma casa com um quintal que a ligava a outra casa; a correria acontecia nesse espaço. O chão era cinza, cimento bruto e acima, varal colorido nas laterais.

Havia pressa e gritaria. Minha irmã tentava em vão fazer com que os seus filhos a obedecessem e se aprontassem rapidamente. Eles corriam pelo cimento cinza, era deles o riso.

Entramos nós cinco no elevador da casa térrea: eu, minha mãe, minha irmã mais velha, meus sobrinhos ainda crianças. Naquele espaço branco e apertado a minha irmã apontou para os pés da nossa mãe e todos rimos; dois pés sem sapato, um sem meia. Assim, havia apenas um pé com uma meia marrom grossa e o outro sem nada. O que ressoou mais alto foi a gargalhada da minha mãe que parecia rir de si mesma; apontava para os próprios pés e ria, jogava a cabeça para trás e ria, o pé esquerdo nu no chão gelado se debatia e ela ria.

Descemos do elevador antes que ele saísse do lugar.

Os sapatos da minha mãe são relevantes, talvez a falta deles também seja; minha mãe amava sapatos, havia uma infinidade deles em seu quarto, número trinta e nove, ficavam grandes em mim. A doença fez com que as suas pernas inchassem muito, consequentemente os pés também, os sapatos bonitos não entravam mais... usou salto alto no seu aniversário de cinquenta e um anos, aquele último, um dia que por uma exceção justa qualquer ela estava bem.

Na mudança de casa ela levou todos os sapatos, para usá-los quando estivesse melhor. As botas, sandálias, sapatilhas, scarpins, foram meticulosamente guardados em um canto do guarda-roupas esperando os pés que outrora os levavam para o mundo acompanhando, invariavelmente, uma mini saia ou um vestido justo.

Me lembro da primeira vez que vi um sapato virado e contive o impulso de desvirá-lo. A sabedoria popular ensina: “Desvira o chinelo, senão a mãe morre!”, na minha família (será que em mais alguma?) isso se aplicou a todos os calçados existentes. Neste dia era uma sapatilha preta, velha, sola ameaçando cair; ali, virada no chão bege, próximo ao sofá. Foram mais de vinte anos reproduzindo a mania de desvirar os sapatos, fazendo a minha heroica parte em manter minha mãe viva, mas quando o alcancei, ali agachada, bem próxima ao chão, senti a dor no peito, a falta de ar, o embaçar dos olhos e a voz interna, maldita voz, que dizia: “Ela já morreu, não adianta mais.”

Impotência.

Impotência é a palavra que a morte da minha mãe me fez entender. Impotência ao ver a progressão de sua doença e não conseguir paralisá-la, impotência em ouvir dos médicos que as chances de óbito eram grandes e não ter conseguido impedir o inevitável, impotência ao doar os seus bonitos sapatos, suas bonitas roupas e seus bonitos brincos.

Hoje estou me sentindo impotente.

Não consegui reter o sonho indecifrável do seu riso em um elevador improvável em uma casa térrea que eu desconheço. Hoje eu gostaria de não ter acordado até abraçá-la uma vez mais, tê-la levado para dentro da casa, ter-lhe posto a meia e o sapato nos pés descalços. Gostaria de mais um passeio, mais um almoço, mais um sorriso, mais uma implicância que fosse... hoje eu queria que os seus pés ainda pisassem na terra.