Teatro, festa e folia

Eu escreveria então o mais belo espetáculo para que dançasse de pés descalços, com um vestido se desfiando e tecendo o chão que se faz ao prenúncio de seu gesto. Escreveria não, pois tu é senhora de você, e sabe o que faz, e eu ia ser então plateia, cortina, tablado, anfitrião, esgar e tudo o que mais quisesse

Eu pediria emprestado para as nuvens os formatos informes, os esplendores que riscam os céus, flamejam e se desfazem antes de chegar a superfície. Pediria que se montasse cenário disso tudo, emplumando o ar numa aurora boreal macia e leve, num jogo de cena ardente.

Lembraria de quando eu vi seus olhos embotados numa camadinha de lágrimas, você levou uma das mãos ao rosto de vergonha, e ali te vi limpa, e ali achei lindo, e ali achei triste, e ali quis morar só para que pudesse, de pronto, sem descanso, secar as lágrimas e apará-las antes da queda.

Convenceria com toda doçura a chuva para que não chovesse, e que, mesmo assim, se fosse pra vir, que a chuva viesse então afim de lavar o palco, de abrilhantar, luzindo as poças de água, servindo de sede a quem nem sabia que tinha, e de pele e véu pra ti.

Pediria a criança emprestado, o vão feixe luminoso que alimenta o olhar,

pediria a terra a semente primeira, aquela que gerou tudo que é vivo e que pulsa,

Suplicaria de joelhos até que eles próprios, os meus joelhinhos, se engastassem e afundassem em plena terra

Acordaria a fome que outrora me róia unha e me rugia o ventre para assim me saciar, devorar cada estrofe sua, cada palavra, como se pudesse comé-las,

Ligaria assim a luz quente e vermelha, para que se desposasse aí a luxúria, sem que nem por um momento se abata a dúvida, a culpa, o pecado ou o engano, e que o prazer pelo prazer se fizesse presente, te bastasse

Governaria os meus sentidos para que quando eu chorasse, risse, batesse palma, ou me curvasse em admiração, que fosse sem assustá-la, sem que se desse conta de que a vastidão do que é pra mim, é muito mais do que os meus ombros ou o que eu digo, conseguem dar conta.

Pediria que o seu silêncio também fosse ouvido como música assim como eu escuto, mas que sua voz existisse também sem afobação, com calma, de quem não tem medo da espera, de quem entende que não há nada no meio de nada, isto é, separar entre um ato e outro é o mero quebramento das partes, o fazer da ordem. Mas você, quando canta, canta por inteira.

Que a sua voz descesse da sua cabeça, para então o seu tórax, e aí o estômago, e aí se abrigasse não para dentro, mas para fora, porque quem busca casa fora de casa, só faz pra voltar depois.

Diria então que me negasse a paz, pois é no caos que eu me faço, me calo, me caio sob o banquete da soberba, pois vou sentindo que você existe melhor quando acolho a sua tacanheza delicada, a sua ousadia contida, incompleta.

E então as cortinas iam se fechando, você ia agradecer, jogar um beijo invisível, ir embora, e eu ia ser o balão de gás hélio mais feliz do mundo. Daquele que anseia o vôo e se eleva, mas tem uma necessidade incontrolável, assustadora do chão das coisas.