A enorme distância entre nós e o nosso olhar



     Eu vi o anjo que havia negociado sua queda para viver seu grande amor aqui na Terra, ele tocava um grande piano branco sobre uma nascente de pedras ornadas de musgos. Um anjo surdo que tocava uma sonata com a cabeça pendente sobre o corpo do piano, alvo e solitário, sem platéia. Apenas o uivo de um vento terno que namorava as folhas dos pinheiros atrás de mim. De seus olhos, perdidos no vazio, brotavam lágrimas que se iam embora para a nascente sob seus pés. Eu nada podia fazer a não ser ouvi-lo, mas sabia que meu tempo era curto, e minha presença ali amplificavam nossas tristezas.

     Distanciei-me como quem tivesse para onde ir, como se fosse um pássaro liberto, como se fosse, ao menos, uma folha seca que no outono se divorcia de seu flamboyant. Enquanto eu me distanciava rumo ao bosque, a música, o doce piano chorava suas notas pelo ar. Andei, andei muito e apesar de não mais ouvir a canção tocada por aquele anjo caído, ela já estava gravada em minha mente. Quando dei por mim, estava em meio a um campo, um parque e uma cidade. Um semáforo fechado e uma multidão que tomou conta de meus devaneios. Lá estava eu num círculo misterioso de almas desconhecidas, irmanadas por uma simbiose ácida, corrosiva à existência, entidades anônimas que vestiam uniformes de heróis e heroínas mortos em algum campo de ilusões. Eles passavam rápidos, rumo a uma intrépida aventura: a magia da noite de natal. Era véspera de natal e a noite já caíra sôfrega com cansaço de mais um dia. Atravessei a rua e do outro lado, num outeiro de outro parque, eu avistava a cidade; prédios solitários. Alguns mendigos floriam no jardim de concreto e algumas crianças murchavam na consciência objetiva da cidade. Então segui o caminho inverso daqueles que iam em busca de seus sonhos natalinos. Passei pelos sem esperanças e atravessei e preenchi a solidão das ruas rumo ao mar. Quando escutei o som das ondas quebrando contra as areias senti-me como se fosse me desfragmentar em cada átomo do meu corpo. Era chegado o fim da linha e o horizonte, lá distante, dizia-me que era meu epílogo então. Momento absorto de significado eu buscava naquele hiato de desespero entre o que fazia sentido na minha essência e na febre que ardia na fronte de minha existência. Eu ainda estava com a música doce e triste, aquela nota de piano tocada pelo anjo caído em minha mente. Até diante dos meus olhos eu podia vê-las, ornando o movimento das ondas, na candura do vento, nas nuvens branquinhas no céu iluminado por um tímido luar. Ali, sem ter mais para onde ir, perguntei-me se valia a pena ser esse homo simbolicus, gritando para abandonar sua casca de sapiência, negando sua condição primata, iludido que a humanidade me consagrara como um ser especial sobre o ventre da Terra. Como se sozinhos em nossos mundos, e falando uma língua estranha, todos tentássemos entender qual era a verdadeira distância entre cada um de nós e o nosso olhar, nossa perspectiva sobre o mundo dos fenômenos, da existência. Para mim, nada fazia sentido, como um todo, só fazia sentido se fosse um bem maior onde todos pudessem vislumbrar, provar e saciar, aprender e repassar, doar e dar a chance da real continuidade do encanto.

Então, pensei em voltar, cruzar de novo a cidade, sorrir ao menos para os famintos nas vielas, para as crianças violadas em suas inocências, passar correndo pelos cantos da noite de natal, voltar ao bosque e dizer ao anjo, quem sabe em pensamento, se ele não me deixaria ali, tocando em seu lugar, com os pés na nascente, com minhas lágrimas alimentando o córrego e tocando sua notas para as silenciosas e frondosas árvores que ali eram sua platéia. E voltei. E quando lá cheguei, ele continuava indiferente ao seu redor. Em minha mente, em meio a um som de ecos de luzes que desciam dos céus, eu ouvi sua voz, como um sax chorando de dor:

- A distância entre nós e o nosso olhar se perde na imensidão de nossas incertezas... Mas navega calmo e sereno nesses mares quem prova e vislumbra essas incertezas com coragem e amor, amor que não pode ser mensurado nem depositado em nenhum coração humano... É esse o mistério. Aquilo que lhe é imprescindível ainda é incognoscível; em suma, se o mistério estiver num lírio em meio ao campo, ou num cacto em meio ao deserto, a maioria de vocês não os reconheceria.

E calou-se voltando a tocar, com a cabeça, o ouvido colado ao piano tentando ouvir suas próprias notas. Ali fiquei esperando o outono voltar para deixar minha alma secar como o capim, como a grama, enquanto navego por essa distância entre nós e o nosso olhar.





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Ronaldo Honorio
Enviado por Ronaldo Honorio em 16/12/2007
Reeditado em 21/11/2018
Código do texto: T781117
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