Sinceridade & Cárcere

A sinceridade é uma dessas aves que vislumbramos de relance pela manhã.

Ao tentarmos ver de perto, alça voo e se esconde por entre as nuvens matutinas.

Quando o céu resplandece em limpidez, consigo acompanhar seu trajeto e ver que ela não repousa muito longe.

Distante, olha-me de perto e entoa a canção que atravessa meus ouvidos e se aconchega no lastro frágil da minha existência.

Desta vez, seu canto atingiu os alicerces da minha hipocrisia, deixando-me agonizar todos os pecados que cultivo no meu egoísmo.

Tenho sido vilão para todos que me amam. E são poucos.

Tenho duvidado de tudo, incumbido pela síndrome de um Diógenes às avessas.

Ando por aí com uma lamparina à luz do dia, procurando a punição que ainda não me ocorreu de modo equânime.

Tenho passado mais tempo vestindo a máscara do que propriamente polindo-a.

Não consigo mais separar, de maneira adequada, o que é pele e o que é plástico em minha face.

O tempo tem aproveitado minhas distrações.

Perco-me no abismo dos meus pensamentos e, lento, deixo de fazer meus afazeres para que eles me façam.

Sou apenas um amontoado de pendências.

Sigo ignorando os pobres coitados que ainda enxergam carne e sangue em meu corpo.

Sim, meu amor, você é uma dessas coitadas, e por isso me porto como um flagelante que repete o mesmo pecado.

Abandona teu amor por mim e encontre-o em outro lugar, serás feliz e eu não passarei de um amante da tua sombra.

Pois tudo que carrego em meu peito está trancado na mesma cela. Seria natural que o prisioneiro “amor” fosse assassinado, durante o sono, pelo companheiro “culpa”.

Se ainda assim me quiserdes, saibas que sofro.

Sofro por não entender como o tempo pode ser quantitativamente igual para todos e tão diferente em qualidade.

Sofro por ser estúpido a ponto de acreditar que é possível enganar a morte com um legado que desaparecerá na cadência de um átomo.

Sofro por me maltratar e ansiar minha queda sabendo que você, intocada pelas mesmas questões, precisa de mim como um engenheiro precisa da matemática.

Sei que sou mero instrumento dos seus planejamentos amorosos – bem sei que se irritas com minhas analogias insensíveis.

Mas também sou falso e verdadeiro, como uma moeda que é, ao mesmo tempo, cara e coroa.

Se aquele pássaro infeliz, chamado sinceridade, inclina-me um pouco mais para a face que considero verdadeira, trato de afugentá-lo.

Algumas horas depois, chamo-o de volta.

Penso em fazer como Bukowski e prendê-lo em meu peito, mas prefiro sua liberdade.

Minha vida não foi feita para mim, mas para a liberdade daquilo que em mim foi preso.

Portanto tombe, Bastilha.

Eduardo Becher
Enviado por Eduardo Becher em 14/08/2023
Reeditado em 23/09/2023
Código do texto: T7860902
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