Lá vem Iansã

Vou escrever o que vi, falar o que disseram em sonho, quem sabe depois eu entenda, é assim que eu encaixo.

Vale dizer que fazia tempo que não fechava os olhos pra sonhar, ver outra coisa que não o dia seguinte. Pesadelos e sonhos iam raros. Até que hoje, horinhas atrás, aconteceu.

É rua. Uma rua longa, larga, erma, quase artéria. Nunca fui lá, se já fui não lembro. O chão vai paralepipedando disforme. O céu é um tapete preto, segura vôo, pedra escura. Alguém me leva na cadeira, as rodinhas numa chacoalhação. Não sei quem está comigo, acho que minha madrasta. Digo acho porque só ouço a voz, vou pra frente num nunca-olhar-pra-trás.

Ouço um coro de vozes que se esticam de longe até nós, quase sussurantes. Não sei em que língua nem o que, mas elas, as vozes, viram camada umas das outras, se subindo e se descendo, se entrando e se saindo.

"Lá vem Iansã" - A voz que me empurra diz

Eu não entendo direito o que aquilo significa, mas penso pra mim, "É a rainha dos raios" Miro pra cima e vejo: duas cintilações, dois fogos flutuantes parados, longe-brilhantes. O coro de vozes aumenta e se aproxima, aumenta e aproxima, como se o som, em procissão, corresse pra assumir as ruas.

Num instante vemos então as pessoas muitas. As donas das vozes. Cantam a mesma canção, andam em mesmo sentido. Nessa hora, a pessoa que me leva não diz, mas é quase como se eu também soubesse, por instinto, o que ia fazer. Procuramos o lado esquerdo da rua, caminhamos junto a parede que se estende numa linha branca quente.

Andamos não sei se um minuto ou uma hora, mas em certa altura a parede acaba, deságua. Minha mão que corria por entre as rugas do concreto, agora vai crua, vai ar, só.

Ouço a voz que me dizer algo como: "Agora você vai, agora você sobe." E então, nesse estalo surge alguém de frente pra mim, alguém que sai do resto pra me encontrar, e repousa as mãos na minha testa. É só sentir o toque que já escapo do meu corpo, me descolo, subo. No olhar pra baixo até consigo me ver

Depois daqui tudo se amalgamou, não consigo lembrar mais de nada.

Só de acordar

"Sei que é tarde más eu tenho medo

Porque viajo tanto enquanto durmo

Voar lugares que eu nem mesma quero ir

Há alguma coisa dita por aí

Mensagens misteriosas

Segredos incontáveis

E eu não quero nem saber

O que eu quero é teu colo manso

Que já não tenho mais"

("Enquanto durmo", Canção de Luedji Luna)