A PRETA TAMBEM

A PRETA TAMBÉM

Sentado à beira da estrada, esperando ônibus e respostas, já fazia um bom tempo, lembrava de um amigo que sabia transformar em piadas as ansiedades da vida.

A solidão inquietante era quebrada apenas pelo ruminar das duas vacas atrás da cerca.

Angustiado pelas recentes discussões com a filha que assumiu sua maioridade e responsabilidade em pensamentos e atos, quase não percebi a aproximação de um matuto, indolência de grande esperteza, que sentou-se ao meu lado após afagar as duas vacas que da cerca se aproximaram.

Ao mesmo tempo em que necessitava ficar com meus pensamentos, senti que poderia ao menos tentar conseguir algum diálogo com ele, consumindo o tempo de espera, embora não acreditasse que ele pudesse me trazer conforto ao espírito.

Há um tempo, que vai do nascimento até não sei quando, que a gente se sente não apenas pai, mas de certa forma proprietário, dos destinos daqueles que geramos e criamos.

Lembro que um dos embates mais comuns da primeira infância era sobre a hora e a necessidade de comer. Na verdade, a gente sempre acha que a fome deles se regula pela nossa, ignorando a diversidade dos nossos organismos e interesses.

- “Estas vacas passam o dia inteiro comendo?” – perguntei

- “A branca passa”- me respondeu

- “E a preta?” – retruquei

- “A preta também” – foi a inusitada resposta

Houve um período em que integrar aquele ser numa cadeia de “tarefas produtivas domiciliares”, tornava-se o estopim para uma batalha que se travava até que o cansaço gerava a desistência de um dos contendores, quase sempre eu.

-“E elas dão muito leite?”- reiniciei o diálogo

- “A branca dá”- me espertei com a resposta

- “E a preta?” – retornei de sobreaviso

- “A preta também” – resposta já presumida

O fato de já ter tido dois filhos antes dela deveria ter sido escola suficiente para entender o que estava acontecendo. Supomos que a experiência de um ou dois nos basta para lidar com os próximos. Mas o afeto e o amor por vezes turvam a razão. E cada um é único. Assim, repetimos erros e acertos.

- “Elas já deram muitas crias?” – tirei de dentro a pergunta

- “A branca já” – ecoou a resposta

- “E a preta?”- ônibus apontando ao longe

- “A preta também” – olhos no horizonte

Pois é, cresceu.

Foi bebê, foi curuminha.

Foi menina e debutante, foi formada e informada.

Namorante, namorada.

Foi meu sonho, e minha posse.

Preto e Branco.

Dobradinha, desdobrada.

Pronta para acertos e erros, para ter um nariz.

Para ruminar, em paz, sua sorte, seus amores.

-“Porque você não fala logo que são iguais?” – perguntei, entrando no ônibus.

-“Porque a branca é minha”- respondeu

O ônibus começou a rodar, janela aberta rumo ao destino, vento que areja, lembrei do último diálogo que tive com ela, preocupações de pai vendo a filha soltar-se em campo.

-“ E a preta, então?” – estrada passando

Obrigado a concordar com o seu crescimento e a transferência da minha propriedade, lhe disse que era como se existissem duas iguais. Uma que ficou com ela. E outra dentro de mim.

-“A Preta também” – e nossos sorrisos se despediram.