O CICLO DA VIDA

EU E O CAQUIZEIRO

26/03/2021

Eles começaram a aparecer em fins de fevereiro, como em todos os anos, ao se aproximar o outono.

Desta vez, como acontece de forma cíclica, vieram em quantidade diferente, mas com um gosto peculiar.

Eu os colho e eles me aguçam o paladar. Fazem bem à minha alma, como as canjas da vovó, as orações de fim de noite, e os risos criança. 

O afeto que cura o dia.

Me fazem bem, me conectam à natureza, me fazem sentar no quintal pela manhã respirando ar puro, me permitem olhar para dentro, para a vida, e refletir.

A vida andava acelerada demais, assoberbada demais, atropelada demais, adoecendo sem perceber na balança dos pontos percentuais das pesquisas globais sobre assuntos banais.

Todos os dias me chegavam notícias de que meu chão, onde piso descalço e sem medo, iria tremer e me ferir.

Que a água, de beber e de banhar, me cobriria de peste, por dentro e por fora.

Que o ar da renovação natural entraria enfumaçado em meus pulmões enfraquecidos.

Que aquilo que me alimentava não seria como um caqui que amadurece com o tempo.

Em fevereiro eles vieram e anunciaram uma nova temporada de colheita, que traria a cada fruto saboreado um tempo maior de reflexão, e que alguns, os que nasceriam na ponta mais inalcançável da árvore, seriam destinados aos morcegos. 

E aos pássaros.

Na escuridão da noite, em vôos malabaristas e abrangentes, de longo alcance, os morcegos vêm de algum lugar para cumprir sua função natural, a de espalhar sementes de fruto e reflexão.

Pela manhã, em vôos cantados e de  pouso leve e saltitante, chegam sanhaços e saíras, para completar o ciclo da vida.

Após tantos anos trocando olhares matinais, rápidos, acelerados pelo atropelamento do dia, este ano eu e o caquizeiro estamos trocando confidências e afeto como jamais fizemos, há quase duas semanas.

Teremos este ano muito tempo para conversar, sobre a vida, morcegos e pássaros.

Até o último caqui do pé.