"Sertão em versos e sonhos: paráfrases da música e da alma Nordestina"

"Sertão em versos e sonhos: paráfrases da música e da alma Nordestina"

Nos recantos dos meus devaneios, tracei o retrato pulsante da alma nordestina, imersa nas melodias distintas que ressoam pelas terras do sertão. Entre saudades e esperanças, construí um painel vivo e sonoro, rendendo tributo aos cantores e compositores que, como trovadores errantes, entoam as crônicas dessas paragens áridas e férteis.

Nesse universo onírico, testemunhei a seca implacável forçando o nortista a se distanciar de sua terra, marcado pela cicatriz da saudade. O solo árido transformou-se em cenário de despedidas dolorosas, onde o vaqueiro vende seu gado e o cantador entoa seu lamento, entrelaçando a realidade cruel com os versos entoados.

Em meio a feiras de mangaio, ao som da sanfona e ao aroma da graviola, a trama se desdobrou, revelando a resistência e a beleza que brotam nas circunstâncias adversas. A asa branca da esperança, mesmo diante da aridez, alçou voo em direção aos céus do sertão, prometendo um renascimento, onde rios correm, cachoeiras ecoam, e a terra se veste de verde.

Cada compasso ressoou a voz de poetas que, em versos musicais, transcenderam o tempo, narrando amores fugazes, dores cortantes e a eterna busca pela compreensão dos mistérios da existência. Personagens como Riacho do Navio e a Feira de Caruaru emergiram no cenário surreal, entrelaçando-se na rica tapeçaria de um Nordeste que pulsa vida e tradição.

Ao despertar desse sonho, fica a certeza de que, nas palavras cantadas e nas melodias entoadas, reside a essência imortal da cultura nordestina. Este relato, mais que uma paráfrase, é uma ode ao legado que o sertão oferece, permeado por sonhos, versos e a eterna sinfonia da alma nordestina.

Eu tive um sonho ruim. Eu sonhei com a terra ardendo igual fogueira de São João. Eu vi a falta d’água matar o gado e o alazão. Eu vi até mesmo a asa branca bater asas do sertão. Eu vi o adeus a Rosinha e o choro dela, longe muitas léguas, numa triste solidão. Eu vi o sertanejo esperar a chuva cair de novo para ele voltar pra o meu sertão.

Eu tive um sonho perturbador. Eu sonhei com a triste partida do pobre nortista. Eu vi como fala o pobre do seco nordeste, com medo da peste da fome feroz. Eu vi que na copa da mata buzina a cigarra. Eu vi que ninguém vê a barra, pois barra não tem. Eu vi que sem chuva na terra descamba janeiro, depois fevereiro e o mesmo verão. Eu vi, então, o nortista pensando consigo: “isso é castigo: não chove mais não”.

Eu tive um sonho aterrorizante. Sonhei que nada de chuva. Eu vi que para o pobre está tudo sem jeito, e lhe foge do peito o resto da fé. Eu o vi vender seu burro, jumento e o cavalo. Até mesmo o galo vendeu também. Eu vi que a seca terrível, que tudo devora, lhe bota pra fora da terra Natal. Eu vi aquele nortista partido de pena, de longe da cena, adeus seu lugar. Eu vi que lhe bate no peito saudade, e as água nos olhos começam a cair. Eu vi o nortista distante da terra, tão seca, mas boa, exposto à garoa, à lama e o baú. Eu vi que faz pena o nortista tão forte, tão bravo, viver como escravo no norte e no sul.

Eu tive um sonho atribulado. Eu sonhei que tudo em volta é só beleza: céu de abril e a mata em flor. Mas eu vi o assum preto, cego dos olhos, não vendo a luz, cantar de dor. Eu vi que, talvez por ignorância ou maldade das piores, furaram os olhos do assum preto pra ele assim cantar melhor. Eu vi que assum preto vive solto, mas não pode voar.

Eu tive um sonho tenso. Eu sonhei que a lama virou pedra e o mandacaru secou. Eu vi quando a arribação de sede bateu asas e voou. Eu vi quando o pau pereira em Princesa já roncou. Eu vi a Paraíba masculina mulher macho, sim, senhor.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que de Taboca à Rancharia, de Salgueiro à Bodocó, Januário é o maior. Eu vi falar meio zangado o velho Jacó: “Luiz, respeita Januário”. Eu vi que Luiz pode ser famoso, mas seu pai é mais tinhoso e com ele ninguém vai.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com uma feira de mangaio, com fumo de rolo e arreio de cangalha. Eu vi cabresto de cavalo e rabichola, farinha, rapadura e graviola. Eu vi pavio de candeeiro e panela de barro. Eu vi um sanfoneiro no canto da rua fazendo floreio pra gente dançar. Eu vi Zefa de Porcina fazendo renda e o ronco do fole sem parar.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que faz três noites que para o norte relampeia. Eu vi a asa branca, ouvindo o ronco do trovão, bater asas e voltar para o meu sertão. Eu vi Deus se lembrando de mandar chuva para este sertão sofredor. Eu vi um sertão das mulheres sérias e dos homens trabalhadores.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com rios correndo e cachoeiras então zoando. Eu vi terra molhada e mato verde: que riqueza. Eu vi a asa branca cantar tanto, que beleza. Eu vi o mandacaru florear na seca e o sinal da chuva chegar ao sertão. Eu vi a menina enjoar da boneca e o amor chegar ao seu coração.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um poeta dizer em versos musicais que nasceu há dez mil anos atrás e que não tem nada nesse mundo que ela não saiba demais. Eu vi os amores que a vida lhe trouxe e ele não pode viver. Eu vi que ele perdeu o seu medo da chuva, pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar. Eu vi que ele aprendeu o segredo da vida, vendo as pedras que choram e sonham sozinhas no mesmo lugar. Eu vi que ele não pode entender tanta gente aceitando a mentira de que os sonhos desfazem aquilo que o padre falou. Eu vi que, quando ele jurou seu amor, ele traiu a si mesmo. Eu vi que hoje ele sabe que ninguém nesse mundo é feliz tendo amado uma vez, uma vez.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um maluco beleza falar que preferia ser uma metamorfose ambulante a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Eu vi que aonde Pedro vai, ele vai também. Eu vi que todos os caminhos são iguais: o que leva à glória ou à perdição. Eu vi que há tantos caminhos, tantas portas, mas somente um tem coração. Eu vi que essa noite ele teve um sonho de sonhador, maluco que é. Eu vi o dia em que a terra parou.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que o mundo é grande e o destino me espera. Eu vi que não é você que vai me dar na primavera as flores lindas que eu sonhei no meu verão. Eu ouvi o toque do martelo na poeira. Eu não vi ninguém melhor que Mestre Osvaldo na madeira, com sua arte criou muito mais de dez. Eu vi que desigualdade rima com hipocrisia e que não tem verso nem poesia que console um cantador. Eu vi que a natureza na fumaça se mistura, morre a criatura e o planeta sente a dor. Eu vi o desespero no olhar de uma criança e que a humanidade fecha os olhos pra não ver. Eu vi que boi com sede bebe lama e barriga seca não dá sono.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com o Brasil ser dividido e o nordeste ficar independente. Eu vi que jangadeiro seria o senador, o cassaco de roça era o suplente, cantador de viola, o presidente, o vaqueiro era o líder do partido. Eu vi em Recife, o distrito industrial, o idioma nordestinense, a bandeira de renda cearense, "Asa Branca" o hino nacional. Eu vi que o folheto era o símbolo oficial, a moeda, o tostão de antigamente, Conselheiro seria o inconfidente, Lampião, o herói inesquecido. Eu vi que o Brasil ia ter de importar do Nordeste algodão, cana, caju, carnaúba, laranja, babaçu, abacaxi e o sal de cozinhar, o arroz, o agave do lugar, o petróleo, a cebola, o aguardente.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um brilho de faca aonde amor vier. Eu vi que ninguém tem o mapa da alma da mulher. Eu vi que um grande amor do passado se transforma em aversão e que os dois lado a lado corroem o coração. Eu vi que não existe saudade mais cortante que a de um grande amor ausente. Eu vi que não será surpresa se o futuro trouxer o passado de volta num semblante de mulher. Eu vi que se teu amigo vento não te procurar é porque multidões ele foi arrastar. Eu vi um tempo que o tempo não esquece que os trovões eram roucos de se ouvir. Eu vi que todo um céu começou a se abrir numa fenda de fogo que aparece.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que um grande amor não se acaba assim, feito espumas ao vento. Eu vi que já não existe o certo, nem errado; só o amor que por encanto aconteceu. Eu vi que onde a máquina me leva não há nada: horizontes e fronteiras são iguais. Eu vi que qualquer um que leva a vida nessa estrada só precisa de uma sombra pra chegar. Eu vi o céu da ilusão que não se acaba e a música do vento que não para. Eu vi a manhã de sol entrando em casa, iluminando os gritos das crianças. Eu vi cidades, fantasmas e ruínas, e à noite escuto o seu lamento. Eu vi pesadelos e aves de rapina no sol vermelho do meu pensamento. Eu vi que quando a saudade invade o coração da gente pega a veia onde corre um grande amor. Eu vi que saudade já tem nome de mulher, só pra fazer do homem o que bem quer.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com o pessoal do Ceará. Eu vi o sertanejo deixar o Cariri no último pau-de-arara. Eu vi um pavão misterioso, pássaro formoso. Eu vi que tudo é mistério nesse seu voar. Eu vi que se eu corresse assim, tantos céus assim, muita história eu tinha pra contar. Eu vi que cantar parece com não morrer é igual a não se esquecer. Eu vi que a vida é que tem razão.

Eu tive um sonho. Eu sonhei uma mulher nova, bonita e carinhosa fazer o homem gemer sem sentir dor. Eu vi que a mulher tem na face dois brilhantes condutores fiéis do seu destino. Eu vi que quem não ama o sorriso feminino desconhece a poesia de Cervantes. Eu vi Virgulino Ferreira, o Lampião, bandoleiro das selvas nordestinas, sem temer a perigo nem ruínas, ser o rei do cangaço no sertão. Mas um dia eu o vi sentir no coração o feitiço atrativo do amor. Então eu vi que a mulata da terra do condor dominava uma fera perigosa.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que foi Deus que fez o céu, o rancho das estrelas e fez também o seresteiro para conversar com elas. Eu vi que Deus fez a lua que prateia sua estrada de sorrisos e a serpente que expulsou mais de um milhão do paraíso. Eu vi que Deus fez nascer a eternidade num momento de carinho e até o anonimato dos afetos escondidos. Eu vi que Deus fez a saudade dos amores que já foram destruídos e o vento que sopra os teus cabelos. Eu vi que Deus fez o orvalho que molha o teu olhar. Eu vi que foi Deus que fez as noites e o violão plangente. Eu vi que foi Deus que fez a gente somente para amar.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com o Riacho do Navio correndo para o Pajeú. Eu vi o rio Pajeú despejar no São Francisco. Eu vi às margens do São Francisco nascer a beleza e a natureza que ela conservou. Eu vi Jesus abençoar com sua mão divina. Eu vi que no tempo de criança esquisita era a carranca e o apito do trem. Eu vi e achava lindo quando a ponte levantava e o vapor passava num gostoso vai e vem.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com quem rezou a novena de Dona Canô. Eu vi quem seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor. Eu vi quem amou a elegância sutil de Bobô. Eu vi que Salvador se agita numa só alegria. Eu vi eternos Dodô e Osmar. Eu vi na Barra o farol a brilhar. Eu vi o carnaval na Bahia, oitava maravilha. Eu vi Desmond Tutu contra o apartheid na África do Sul. Eu ouvi um grito: “libertem Mandela, nosso grande irmão”. Porém, tive um sonho pesaroso. Eu vi que na Bahia existe Etiópia e que para o Nordeste o país vira as costas.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes. Eu o vi vindo do interior com uma velha roupa colorida, como nossos pais. Eu vi a sua alucinação com medo de avião e o seu coração selvagem. Eu vi que ele não estava interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais, nem nessas coisas do oriente, romances astrais. Eu vi que ele estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol. Eu vi que sons e palavras são navalhas...

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um sujeito de sorte, que era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais. Eu vi que ele era como um galo, quando havia, quando havia galos, noites e quintais. Eu vi quando veio o tempo negro e, à força, fez com ele o mal que a força sempre faz. Eu vi que ele não é feliz, mas não é mudo. Eu vi que hoje ele canta muito mais...

Eu tive um sonho. Eu sonhei que viver é melhor que sonhar. Eu vi que o amor é uma coisa boa, mas eu também vi que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa. Eu vi vindo no vento cheiro de nova estação. Eu vi que na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais. Eu vi que nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, Zé Dantas, Patativa do Assaré, Jackson do Pandeiro, Sivuca, Zé Ramalho, Amelinha, Belchior, Fagner, Ednardo, Raul Seixas, Mastruz com Leite, Luiz Fidélis, Rita de Cássia, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Bráulio Tavares, Ivanildo Vilanova, Flávio José, Petrúcio Amorim, Maciel Melo e outros ícones da música nordestina...

Josemar Alves Soares
Enviado por Josemar Alves Soares em 21/12/2023
Reeditado em 08/03/2024
Código do texto: T7959016
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