Homens da Noite

Nascer à noite é pecado, mas foi na hora mais escura das madrugadas que eles vieram ao mundo, confundindo-se com o breu calmo do útero materno. Não é digno de um homem nascer à noite, interrompendo o ritmo natural das horas de descanso, em que o mundo dorme e a existência pesa mais. É preciso ao nascer, ser dado à luz do astro-rei, com os olhos abertos e os sentidos bem atentos ao fardo de vida que inicia. Cresceram na contemplação do silêncio que o desenho das constelações ressoa. São seres que servem às noites e fazem da lua um vigoroso sol a iluminar os confins noturnos que os ganham. É tarde quando sua vigília começa, e é cedo com uma chama rara ao horizonte que o sentido de sua existência se esvai. Filhos das brumas e netos do tempo, são pacientes como uma noite sem fim, em vagar insone acalentam o solo em que os demais dormem em profundo sono.

É doce sentir o crepúsculo anunciando mais um espetáculo de sombras ao fim de uma tarde de verão. A brisa das noites é longínqua de energias viscerais, que queimam sanguinolentas, o ar da noite é o ar da graça daquele que se ausenta e do qual não podemos esquecer, sob pena de descontinuar a verdade dos dias. Não são homens de pele escura, porque a noite também serve para mostrar que todos se igualam quando as luzes se apagam. Noites são suas mestras na arte da humildade e da esperança pelo próximo amanhecer, noites ensinam a valorizar o passado de sol e o futuro de luz, porque a noite é o presente que pode nos passar despercebido, não fosse a brandura ousada de um poeta. Esses homens são subservientes à mais bela arte da poesia, inspirados pela quietude de um negro véu que cobre os lares com estrelas cândidas. Notívagos de passos reluzentes, abrem caminho em trilhas de penumbra, viajantes de outras eras que escolheram as noites para espreitar aqueles que infringem a regra do sono obrigatório e medieval.

Castos companheiros da sedução dos amantes, que escolhem a noite como palco e como cama, e das putas, que sequer podem dormir ao relento em suas horas vazias. Amam a noite como um felino ama a sua presa, morreriam por ela, porque dela já nasceram. Ser noite está em sua essência primordial, corre pela ancestralidade de suas veias o temor pelo canto dos pássaros que declamam o dia recém-nascido, em longa espera pela redenção noturna enquanto a vida se agita do lado de fora. Quando anoitece, seus olhos de rapina procuram pela serenidade que obscurece a antiga aurora, já adormecida em seu berço de ouro. Foi na escuridão que tudo teve sua origem, mas foi preciso que os dias surgissem para distrair-nos da seriedade de uma criação perfeita.

Homens da noite são homens que não morrem quando o remanso das noites finda, mas são homens capazes de matar na salvaguarda de uma lua cheia que se manifesta nas noites de desejo voraz. Pecado capital que os deserdou das benesses solares de um mundo que pende para trevas remotas. Destituídos de certezas e de sonhos, resta-lhes assombrar o sonambulismo das ruas, das praças e dos bosques. Mas a noite é mulher, etérea e virginal, dama de flores, deusa de amores, jasmim inconfundível. Ávidos são esses homens, que de face alva em contraste com a noite eterna, a conquistaram na ânsia de sucedê-la. Enquanto vestem um enegrecido céu cristalizado, eles cumprem suas andanças sem rumo e sem solução, tal qual a última das noites que descerá à Terra.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 10/01/2024
Reeditado em 10/01/2024
Código do texto: T7973616
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