Espavento de flor.

Um espavento me toma sempre que recebo flor. Filho igual da boa surpresa e da antecipação do que é imparável e há de pior, esse sentimento me serve, se para qualquer coisa boa, como a labareda que acende meu semblante e regala, àquele que me presenteou, genuína reação. De tudo, esforço meu, só a alegria ele decifra. Creio não estar aqui falando de algo assim tão singular. Pode ser, ainda, que esse espavento seja comum a muita gente e, se bem me lembro, cheguei a vê-lo retratado em um filme desses sem fala. A moça, recebendo flor de seu "bem-me-quer", lança-se aos seus braços, lamuriosa, e questiona em tela negra: "Ó, céus! Por que a matou por mim?!" A resposta está na pergunta mesma, mas não serve para aplacar, da moça, a sombra do dissabor — supondo ser a pergunta uma memória que fielmente atribuo à personagem, e não um mero reflexo das deliberações que esse modo de ser presenteada me suscitam.

Não que eu deseje não mais receber flores. Honestamente, morram quantas forem necessárias para que ele venha até a mim, todo feito em podência de doar amor, inquilino etéreo do imo peito, por detê-lo encerrado, ornado sobre o que há de mais belo, cá, bem fora e bem corpóreo; mas que seja mesmo necessário que morram... não, não deixará de entristecer-me. Mal se avistou as pétalas, lá vem ela, que a tudo se sobrepõe, determinando o fim do entusiasmo: "Dentro em pouco, acabará!" Estabeleço, contudo: este não é um tratado de amor e luto a toda flor apanhada; é tão somente às que me deu. Que estas suas, minhas flores não vivam para sempre, eis a sola razão de ser da elegia.

Nunca tornar-se-á a rosa mais bela do que dantes. Em suas mãos, amor feito orvalho e pétala. Entregue às minhas, o que lhe cabe é só o processo de morrer. Ganho-a num instante e no outro já me vês correndo para salvá-la como posso, levando-a lá e cá, tal qual um paciente... e ela se morre. Agora mesmo, enquanto escrevo, do meu lado, ela se morre. Já guardei partes delas antes, pétalas emboloradas em caixinhas de madeira no fundo da gaveta. Não guardo mais uma que seja se não pude guardar todas. Ante a lata de lixo desse nosso apartamento, penso em secreto, jogando a rosa fora: "Não quero nunca ganhar outra". Sem perceber, tal pensamento me atormenta desde o fundo daquele mesmo lixo, me perseguindo até o dia em que revivo o espavento, que é da próxima, e da próxima, e da próxima...

Eis aqui um pensamento torpe: se me presenteando ele esperasse que eu as mantivesse vivas, ao menos caberia indignar-me da exigência. Diria que é sandice, que coisa assim está para além do meu controle. Quem sabe se por despeito, até, eu as deixasse morrer. Mas não me é a alternativa. Porque ele nada exige, deixar morrer não é despeito, substância ou manifesto; é somente prostração ao que é imparável e há de pior. Dando-me a flor, só pede beijo, e o beijo mesmo ele me dá. Com amor e alegria, a rosa e o beijo. Sobra para mim ser a dona da insana expectativa, que apesar de insana não é menos atual. Assumo eu mesma o papel da louca a quem devo responder, e contra mim não sei me indignar. É ou não o pior dos infernos possíveis? Devo dar-me tudo o que me cobro, quimérico que seja. Devo dar-me o mundo antes da serpente.

A flor, minha melancolia e um apartamento com três latas de lixo por quintal... Se no Céu desejo um jardim, é para que eu tenha, mais do que um milhão de flores vivas, lugar onde enterrar as todas mortas que me deu.

Maria Amaro
Enviado por Maria Amaro em 06/02/2024
Reeditado em 06/02/2024
Código do texto: T7993457
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