Bruxas, Fantasmas e Demônios

Tirei o passado das paredes e das gavetas. Não poupei nenhum dos ângulos de nenhuma das caixas. Todos os vãos, todas as frestas. Cada coisa que saía dessas tocas, nojentas, sujas que a memória cria pela casa, ajuntei com estas duas mãos em um único lugar. Meus sonhos, meus desejos, meu prazer, tudo o que outrora estimei, tudo o que alguma vez o fôlego roubou-me por dor ou por júbilo: às incontáveis peças de meu coração, dei a oportunidade de levantar-se das tumbas, sarcófagos e valas infectas para assombrar-me uma última vez.

Cartas. Havia milhares. Como folhas que caem das árvores, são lixo a amontoar-se na casa alheia. Cínicas, depois de tantos anos ainda clamavam Te amo, Sinto tua falta, Prometo, Juro. Nunca param, nunca! Uma carta é como a fotografia de uma estátua de gelo.

A propósito, fotografias saíram dos armários como aranhas. A película é o elixir da juventude; o fotógrafo, o senhor do Tempo. Vi-me. Aquele eu incitou minha inveja madura, sorrindo como um diabo para a lente. Encarei-o. Desafiei aquele eu morto que viveria pela eternidade a me afrontar por detrás do papel brilhante. Seu fim estava próximo.

Com satisfação e luxúria, derribei filósofos bolorentos, literatos amarelos e poetas rasgados. Portugueses, ingleses com intérpretes medíocres, um francês miserável, um ébrio americano, um suicida e um louco alemão, e os piores dentre todos: os russos. Para o chão! Estirpe de gente ingrata e atrevida, a sussurrar todas as noites Tu és o que dizemos. E os brasileiros?, papagaios talentosos dos piratas de outras bandeiras, todos menos um, que plantava rosas. Bastava de sua audácia!

Não tardei a fazer um monte negro e reluzente, sobre as cartas, os livros e as fotografias. Dei um adeus sarcástico aos rapazes de Liverpool, de quem nunca gostei, mas esses eram memórias de outras memórias. Depois, um a um, expulsei os últimos entre os demônios. Chegado o momento de seu exorcismo, berraram, desesperados, seus nomes: Eu sou O lado escuro da lua, Eu sou O fumo sobre a água, Eu sou A natividade em negro. Não pude conter a dor ao desalojar de mim o último deles, e lançar seus restos negros de vinil sobre os outros, enquanto lamentava: Eu sou Escadaria para o paraíso.

Chegou a noite, a melancolia que vem em seus braços por pouco não me fez desistir. No chão, o passado. Vencido, mas ainda vivo. Não para sempre. Diante dele, contemplo-o. Estou inebriado pela exaustão. A liberdade, qual uma brisa, começa a entrar pelas portas e janelas. Sinto-me leve, e grande. Inspiro esse ar novo, e as reminiscências murmuram pedidos de clemência. Não! Não hoje!

Trago comigo os instrumentos, e cá estou a conferir os últimos detalhes. Está o corpo da bruxa estendido no chão. Querosene. Paredes, aberturas, esse soalho que tanto orgulhou alguém de meu passado. Coisas velhas. Nada disso existirá em breve. Roupas, calçados, dinheiro imundo. Braços, pernas, cabeça, púbis, raspei os pêlos que juntaram essa poeira de outro tempo. Não quero nada do passado. Mesmo esse combustível é o resto do passado, lixo do petróleo que é o lixo viscoso debaixo do tapete da Terra. Querosene. Fogo.

A bruxa Nostalgia revolve-se. Arde. A casa responde ao seu sofrimento, e também grita, e seu grito engasgado atrai as chamas para as paredes. Em instantes, essa força da natureza que nós, a eras, domamos, agora, devora minhas recordações. Eu canto. Deixo a bestialidade contida em mim aflorar, e danço ao redor da fogueira. Chamas lambem o forro, sobem pelo telhado, lançam-se no ar. Danço, e sinto a liberdade, agora, arrastar e sacudir meu corpo com violência. O fogo me convida! Nada mais do que eu era existe. Tudo agora é pura energia, mas falta ainda a oferenda. Renascerei hoje. Renascerei a partir de minhas próprias cinzas! O fogo me convida, e eu danço, e eu corro, e eu canto glórias pela libertação ao passado! Adeus eu! Atiro-me! Fogo purificador, consuma-me! Abandono o velho agora! Viverei! Renascerei! RENASCEREI!