a vida acende depois é cinza

Lembro quando meu pai no primeiro carnaval dos meus primeiros anos, levou-me à pracinha onde tinha baile ao ar livre. Fantasiada de baiana, qualquer fantasia sempre me pinicava toda, um incômodo isso de máscaras e fantasias, com colar pendurado no pescoço e eu pendurada no pescoço de meu pai.

Sem paciência ele me arrebatou de seu colo como se fosse um bicho agarrado a sua pele, arrebentando o colar que se espalhou pelos pés dos outros, quis correr atrás das bolinhas douradas e juntar todas elas de novo, mas tudo já havia se perdido. Ele me pôs no chão, tive medo imenso. Enquanto ele abaixava para me pôr no chão, sem querer queimou-me o peito com o cigarro que estava fumando. Esfolou-me o peito, aquela ponta acesa chiando na pele, só eu ouvia, o choro se misturava ao som do carnaval que durava para sempre, ele ainda sem perceber que o cigarro ia se apagando, ferindo fundo o meu peito me deu umas tapas por achar que eu chorava à toa ou porque havia me colocado no chão ou porque o colar arrebentou, e a mãe furiosa ia perguntar. A mão pesada, estremeci toda, devia ter uns dois anos... e dois anos de peso e estremecimento, já era para mim dor imensa, uma eternidade viver... e ver naquela noite, no meio de tanta gente minha própria solidão e a chama de uma dor, de uma coisa que ardia em mim, era a vida acontecendo em carne viva , a ponta de cigarro acesa ardendo, queimando no peito.

Na confusão da praça ninguém mais ouvia a voz do outro nem mesmo a sua própria. Naquela noite meu pai imprimiu no meu peito a sua dor, a sua solidão, o seu desespero, o seu desamparo, e o de todos nós, me mostrou que vida se apaga sem que a gente perceba, mas antes, queima à flor da pele, e arde fundo no peito. Ele não era bom nem mau, ele era o que era, o que dava pra ser, o que podia ser.

Não tenho culpa de ser. Ninguém tem culpa.

E vamos todos morrer sozinhos num choro miúdo da noite, ao relento. Ou em plena praça e terça de carnaval. Ao final ou no meio de uma festa que termina logo, logo. Mas antes há o apagar do cigarro no peito, o chiado mudo e choro onde ninguém ouve. Caminho nos sulcos da noite.

Carnaval. Ah, essa vida é profana e eu profano as coisas, sobretudo eu mesma . Eu cuspi nos santos e não pedi licença, nem fiz o sinal da cruz pra atravessar a rua, não peço permissão pra dobrar esquinas, agora eu que agüente. Debocho quando baixa o santo. E, baixou o santo em mim, foi? Ou será foi o demônio?

Sei que vou estorricar nesse jirau que gira...gira, sei que vou. O que há de se fazer? Rodar a baiana!? Nada!? Paciência. Ouvir o chiado no peito.

(vou apagar logo, antes que dê outro carnaval) ;)

Alessandra Espínola
Enviado por Alessandra Espínola em 17/01/2008
Reeditado em 04/05/2008
Código do texto: T821500