[Peregrino de um Sonho]

[..." de un sueño lejano y bello soy peregrino " — Atahualpa Yupanqui]

Não, o meu tempo não está de todo perdido, eu ainda conto entre os vivos.

Eu venho de longe... desde Minas venho. Venho de enluarados serros frios, quase azuis; venho de um tempo de chuvas finas, criadeiras, tempo de capim molhado, umidade rastejante até os ossos; tempo de cavalos estáticos atados ao tronco de uma gameleira; tempo de gotejantes varejões de carroças erguidos para o céu numa feira de quarta-feira de um qualquer tempo.

Venho de todas as partes do meu grande país; nasci de uma terra fecundada com ardor na plenitude da esperança do quando de um sonho; venho de um tempo grávido em que os trilhos do trem partiam para um mundo de possibilidades...

E se conseguem acreditar no que eu digo, saberão que nada tenho a resgatar do Passado, mas apenas trago imagens daqueles dias, imagens compulsivamente nítidas...

E no correr dos dias, quando os meus olhos se cansaram, quando o verde-cinza das imbaúbas cravou-me mais um espinho,

quando o meu peito era só uma caixa de ressonância, quando compreendi a inutilidade de falar aos homens, vi que eu estava doente — doente do tempo!

Portanto, que nada, ser nenhum, nunca, em nenhum instante desta vida, em nenhum ponto desta estrada, se espante, ou se estarreça

com essa angústia, essa dor de ocos.

Com o meu ser pasmado do absurdo da vida.

Com este meu corpo cansado das noites nos bares.

Com esta dor da terra perdida para sempre.

Com o meu desdém ante a desgraça.

Com a frieza que às vezes aparento.

Com o tremor fino que às vezes sinto.

Com a loucura que baixa da lua cheia.

Com o meu peito aberto aos golpes.

Com os meus olhos perdidos no vazio.

Com a minha dureza para viver

as novas brotações.

Com o meu vetusto jardim

praguejado de ervas daninhas.

Com o estar bêbado ou morto, tanto faz,

de tanto ser, de tanto ser...

Estou ébrio da vida, estou bêbado da não-vida, estou cansado do peso de ser o que não sou, estou trêbado de não ser o que sou, estou cansado de ser o que penso que sou, estou cansado da alteridade doida que me distancia de trilhas bem conhecidas.

Parto e reparto a morte com quem anda comigo, e, no entanto, sei que ninguém anda comigo, sei que me evitam, tenho a peste da existência lúcida, sou louco, sou estranho, apago a luz dos olhos para as mesmices que me sufocam – sou, mas não sou – o que ou quem sou?!

Treinaram-me para um papel, ser alguém, mas tornei-me apenas um simulacro!

Repito — ninguém anda comigo agora, cavalgo só por velhas trilhas de Minas, espreito as tocaias nas curvas das estradas, piso a areia avermelhada onde acamparam os ciganos, os ladrões de cavalos, os roubadores de sonhos... Piso em silêncios cravados de mourões de aroeira, sou um velho garimpeiro mourejando num areião, caminho entre ramos de espinhos avermelhados. Ah... aroeira, aroeira, sagrada madeira do meu país!

Parte de mim sente o cheiro do gado na noite.

Parte de mim sente o calor do motor do carro e torna a sonhar.

Parte de mim voa numa avenida de North Troy.

Parte de mim vai para cama com uma puta brasileira.

Parte de mim trepa com aquela puta

norte-americana de profundos olhos verdes.

Parte de mim sonha com uma casa ao pôr-do-sol.

Parte de mim contempla o horizonte sobre o mar.

Parte de mim sonha o grande sonho das Américas.

Parte de mim sabe e chora o sol

nas vendas das estradas de Minas.

Parte de mim ainda luta com o barro nas estradas.

Parte de mim guia os bois carreiros.

Parte de mim ouve o sino do arraial do Barreirão.

Parte de mim viageia o refrigério

da umidade onde vivem os Buritis.

Parte de mim trilha a poeira vermelha do sul goiano.

Parte de mim contempla o Paranaíba pojando na cheia.

Parte de mim vive... parte de mim, morre...

Parte de mim deixa tudo inconcluso.

Parte de mim anseia ter a chave da tumba fria.

Parte de mim não sabe se vai amanhecer.

Parte de mim tem certeza que sim, amanhecerá...

Parte de mim desce uma ladeira de pedras na madrugada.

Parte de mim fecha todos os bares da cidade.

Parte de mim bebe a penúltima.

Parte de mim ouve um tango.

Parte mim morre nos poentes.

Parte de mim peregrina um sonho...

Parte de mim... parte de mim... deixa-me,

parte, apenas parte de mim, inexoravelmente.

Parte de mim parte, parte, parte só... irremediavelmente só!

[O Brasil dissolve-se na teia do meu ser... ou o contrário? Encho as minhas mãos de terra, de pura terra, e choro...]

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[Penas do Desterro, 28 de janeiro de 2008]