600 palavras

600 palavras

Por seiscentas palavras, eu, palavra, pegaria todas e jogaria num saco, e daí, munido somente de silêncio, pediria as suas virtudes, que a despeito de não serem nem uma nem trezentas, teriam a força suficiente para me aplacar as mágoas e transformar meu coração. Porque, afinal, nem mesmo seiscentos réis foram suficientes para ouvir os bacharéis de cordel e de improviso, exibindo sempre um sorriso e me dizendo que palavras são palavras, e o não dito faz mais efeito que o dito.

Foi aí que, de um instante de tristeza e não uma moleza de corpo mas de alma, me fez ouvir o sussurro, que numa cadência monótona assim exprimia: vai, criatura, vai, persevera, foge do pântano das agruras e te lembra que a conselheira do guerreiro é a morte, que lhe demonstra com carinho singular que o pranto e o medo simplesmente não valem a pena. Que as coisas a um só tempo são grandes e pequenas. Pensa nas palavras do teu coração, que até podem ser seiscentas. Ou quinhentas.

De porta em porta, fui tentando avaliar a ginástica das neurovias, sempre alertas como lebres, festejando a decadência das falsas alegrias e daquela história de amor que já passou, e que depois dela vem a mágoa e a saudade, nem sempre de mãos dadas, mas fatalmente acompanhadas do tal sussurro e seu ritmo uniforme, dizendo nos conformes: te aquieta, guerreiro, seiscentas palavras não são nada, experimenta mil e duzentas, que esse caminho não tem fim, tua sede de amor se equipara às areias da praia distante, a água salgada vem e vai, corroendo-as não, lambendo-as talvez, mas sempre temperando em ti o poder das ondas e a mansidão das ilhas com palmeiras, ensolaradas como o infinito, alegres como o Todo, que a tudo permeia como o canto das sereias.

Foi então que três reis apareceram, cada um com duzentas palavras, exatas como a matemática sagrada, e cada uma delas dançava seminua, as duzentas de cada rei, brilhantes como estrelas pontiagudas, formando um delgado desenho, que assim traduzia: tudo é amor, guerreiro, te afasta do que não presta, ódio, cobiça, luxúria, preguiça e te concentra no amor, porque a mágica de Deus está nesta sentença: assim é se lhe parece. E estamos aqui, ó guerreiro, pela magia da virtude e no poder do amor, o amor que tiveram por ti, o amor que tens por ti, que tiveste pelas mulheres que te acrescentaram, pelos filhos que te iluminaram, e pelos homens, que longe do bem ou do mal, te desafiaram.

Por seiscentas palavras, permaneci na estrada, lembrando dos reis e suas dançarinas, agora vestígios, pensando nos rumos que nada mais são do que possibilidades, das emoções que muitas vezes são memórias ou premonições, firmando minha presença no instante, sempre no instante, porque não há medicamentos para o passado nem sofrimentos para o futuro, e a paz tão almejada está no equilíbrio das velocidades, meus passos alinhados com os passos do Todo, pois só assim posso me ajoelhar face à Força que criou tudo isso, só assim posso também dançar bem juntinho dela, sentindo sua pele em contato com a minha, seu hálito morno que significa vida. Só assim posso erguer a cabeça, pedir aos magos que me acompanhem, aos mestres que me abençoem, para que um dia, não talvez mas com certeza, não sei quando nem onde mas sei que virá, perdoar com plenitude essa ciência inexata chamada existência, que não conta palavras nem atitudes, tampouco minhas variações de humor ou de altivez, mas que lança, em cada etapa da jornada, a tônica dessa canção, sem implorar mas decretando: esperança.

Bernard Gontier

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 12/02/2008
Reeditado em 06/02/2021
Código do texto: T856947
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