Improfícuo jardineiro das flores no lodo



         Foram tempos idos, anos perdidos em que os cabelos dela eram da cor dos girassóis; mas não havia mais girassóis! Desde que seu arbitrário juízo, disfarçado com libertárias iconoclastias, investiu-se em seu âmago polar, ela morrera; foi num dia em que estava vestida numa nobre toga, manchada pelo sêmen de um Romeu, ator de existência perene, que interpretava dois atores nos palcos saltimbancos de sua existência: um Casanova pela manhã e uma Virgínia Wolf ao anoitecer.
         Desde aqueles tempos em que a menina morrera nela mesmo, o jardineiro não a vira mais. Apenas em sua imaginação, correndo pelos campos e jardins, liberto dos desejos ambíguos nutridos por ela, ele apreciava as flores azuis que nasciam no ventre alvo daquele corpo primaveril. Suas lágrimas ele mesmo as tomava, e de sua sede ele mesmo se alimentava. Nas mãos dos tempos uma cachoeira de adversidade banhava seu corpo envelhecido, pintado numa tintura fosca por um andarilho que assobiava tolas canções de amor (Tolas?). Talvez ela assim pensasse, não ele. Quando o andarilho partia, seu corpo remoçava-se; então ele se punha a correr para o campo, entre as ovelhas alvas e simplórias, para ouvir um ritmo de banjo trazido enigmaticamente por mistrais que choravam da parte mais alta daquele jardim solitário.
         Somente sua existência insana naquele lugar concedia sentido à sua vida, o seu eu afogado em meio às ilusões do ser, já que não precisava de posses para fazer justificar ainda mais suas utopias. Bastavam-lhe os silogismos que se enraizavam em sua racionalidade bêbada, em sua essência violada pelas duas forças; newtoniana e einsteiniana. Nada mais que isso lhe era imperativo.   
         No pôr-do-sol de um dia perfeito, há muito esquecido pelo jardineiro, depois do encontro com sua menina envelhecida pelos axiomas românicos, onde em suas veias e artérias corria vinagre tinto, ele cônscio ficara de que sua existência esvaziara-se do sentido que ele pensava ter; o malho do acaso lhe atribuía o anátema final. Bastava para ela apenas o banquete ofertado pelos seus cinco sentidos (Para que mais?). Na mente dela tudo se resumia num Big Bang sexual, que ele não entendia os motivos que a levavam a ocultar tudo isso em equações quânticas e num manifesto de um memorial de lembranças à morte de seu ego dicotômico. Depois do enterro do sol naquele ocidente, naquele dia perfeito, seu oriente se liquefez em lodo. Então, sob seus pés, o charco convidava suas raízes e seu resto de existência para se nutrirem ali. Imbuído de uma equidade cega aceitou viver sem mais dar sentido ao seu epíteto agonizante quimérico; sem mais sonhar com sua utilidade no coração ártico dela. Esperança pintada de azul. Rosa tingida de azul. Amor com gosto de azul.
         Assim como cresceram raras e frondosas árvores negras, que não faziam sombras sobre as flores que nasciam no lodo, sob primavera nublada pintada como natureza morta, o espírito inútil do jardineiro dissipou-se no ar e no arfar do orgasmo solitário de sua menina morta nos tempos em que os girassóis tinham a cor dos cabelos dela.

 



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Ronaldo Honorio
Enviado por Ronaldo Honorio em 25/02/2008
Reeditado em 21/11/2018
Código do texto: T875580
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