morreu a senhora que não sabia ler

no pudor da viúva secreta, havia a vertigem do álcool;

e do riso.

o riso cansado, o passo passado, tímido, o olhar terno mas contido.

já não havia mais ninguém. nem marido, nem netinho,

nem pernas para sair dali. restava-lhe chorar a morte anunciada; e o abandono.

sofrer as chagas do corpo, gasto. a vida enganou-a, votou-a à ridícula solidão. sofreu, chorou, perdeu. mas naquele céu, com esperança e canário, na luz-clarão que nos irá redimir da penumbra, naquele tal sítio haveria de voltar

a sorrir, pela última vez. a memória dos beijos,

do afecto, da aldeia e dos bailes; a primária perdida;

a promessa de se tornar estrela dos filmes. mas não sabia ler. mas não sabia ler.

gostava de namoriscar, adorava água tónica e esparregado

e cerejas.

mas não sabia ler. foi condenada pela vida, sem qualquer culpa. foi mártir, mãe negra, ama sem dinheiro, generosa sem etiqueta, esperta sem cultura. não sabia ler...

só que, apesar de nunca ter sabido ler, amou e pintou planetas, chorou a alegria e criou pequenos deuses.

na hora do seu funeral, a sociedade dos cobardes riu-se à brava da senhora que não sabia ler.

só, como um anjo caído em desgraça, morreu

com a dignidade dos poetas.

e voou até aquele lugar de delícias e mar.

lisboa (5 de junho de 1998)

Nuno Trinta de Sá
Enviado por Nuno Trinta de Sá em 28/12/2005
Código do texto: T91492