Suicide Show

Não fosse ela menos sensível, não se aperceberia da sutileza e da beleza que, embora tenebrosa, permeava aquele momento.

De sua cama, os pés por estrado, e não se importando em absoluto com o barulho lá de fora, ela via manchas pouco mais que suspeitas na parede. Não tivesse o apartamento cubicular o cheiro de ervas mortas, ou queimadas, seria até agradável à permanência.

O cinismo dela, ao perceber a navalha sobre o criado mudo, a fez sorrir com apenas um canto da boca, pensando em como tudo na vida, às vezes, pode se resumir a apenas um ato. Este ato tão definitivo, mas pouco abonador, não se sabe se pela sujeira que causa, ou pelo trabalho que dá para os outros carregarem.

O cigarro, estava no fim, como sempre. Ela nunca se lembrava de como surgira o cigarro em sua boca. Apenas da última e agradável baforada. Aquela em que os pulmões parecem ser inundados por várias mariposas doidas, ou ainda por um cardume de peixes indolentes.

A navalha permanecia sobre o criado mudo, e o sorriso cretino também. Tudo isso anexado a um apartamento ha muito tempo sem vida ou interesse. Daqueles lugares onde não se entra nem por alguns florins.

Paisagem é uma coisa tão dispensável....Falar do momento, das cores das roupas, das emoções, tudo isso é tão sem sabor quando a vida se resume a apenas um pulso branco, ligeiramente róseo com algumas veias levemente azuladas, e uma navalha sem nada de especial, a não ser o fato de ser cortante e inanimada.

Exatamente às 16:37, Alice decide morrer, não por tudo o que sofreu, ou por nada do que viveu. Quis morrer porque viver havia ficado chato, desinteressante e cansativo. As bandas de rock já não produziam mais nada de interessante, desde que o Ozzy virou um príncipe das trevas cor-de-rosa. A literatura havia se acabado com Shakespeare mesmo, então, nada a lamentar. E o mundo havia engordado. Como estava obeso....

Amor, essa palavrinha tão traiçoeira, certamente fazia parte da cabeça de quem vivia a era da inocência medrosa. E cinismo e dissimulação não convivem bem com o amor.

Às 16:38, Alice decidiu não mais morrer. Alice era assim. Como o seu curso de pintura, seu casamento e sua ginástica, ela também desistiu de se matar. Preguiça. Pura e simplesmente.

Alice foi dormir, sentindo o cheiro de ervas mortas, ou queimadas.

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 01/04/2008
Código do texto: T925995