DE  VIDAS  E  SONHOS


     Teríamos um atestado de vida? Algo que informasse a quem não nos vê, nem ouve, nem sente nosso cheiro, que somos feitos da mesma massa que todos os mortais? Porque nestas paragens virtuais, convivências se fazem principalmente de dentro pra fora, e a forma exterior, esta se reduz a uma foto e às vezes o som da nossa voz. Somos letras simplesmente? Uma construção de nós mesmos que o outro decodifica e reconstrói? Ou quem sabe não queremos mesmo saber da forma humana em carne e osso, que sangra de verdade e tem largura altura e volume? 
     E o que é a visão do outro?  Uma multidão cruza com aqueles que andam pelas ruas das grandes cidades. Todos cruzamos com muitos corpos. Eles existem pra nós? Não, são só fachada, corpos em movimento. 
     Entraríamos aí numa grande questão filosófica sobre o que é realidade e não é esta a minha intenção.    
     Mas um simples papel com carimbos e devidas assinaturas, pode atestar a minha  não vida, o fato de eu ter sumido do planeta Terra. E um simples retângulo com foto  e  dados  devidamente comprovados autentica para toda e qualquer eventualidade, esteja onde eu estiver, que eu tenho existência real, que sou mais uma na na grande e fria lista de um programa de dados de um computador qualquer. 
      Um escritor deixa sua alma em seus livros, seu suor, suas lágrimas, passa a limpo seus avessos, retalha a alma em noites insones e se eu o leio, consigo saber da sua existência real? Do seu caráter, das contas que  pagou, da sua rotina sem graça, de um casamento de fachada, dos seus vícios, indignidades, covardias, da pessoa que tem cólicas, dos seus fetiches, seus arrependimentos, culpas? Sim e não. Aí diria alguém mais cínico, "poupe-me dos detalhes sórdidos". Porque um grande texto transcende a própria existência de uma pessoa, ele a transforma  em  agente  de eternidade. Aquele que cria, busca em  estâncias  que são invisíveis a olho nu e como um alquimista escava fundo e produz combinações raras e  únicas, em uma provável aliança  com o divino. 
     Todo mundo sabe que ao escrever, estamos ali de corpo e alma, até uma dor fisica pode transparecer em um texto. E temos nossa biografia, dados de identificação, além de momentos da mais completa banalidade que fazem parte do que somos.  Mas nós, poetas, não gostamos de coisas   simples,   de  uma   normalidade instituída e muitas vezes castradora. Receamos a queda rumo ao solo tridimensional. Então, ao encontrar finalmente o tão almejado amor, muitos percebem que a finitude de sermos humanos se sobressai nos intervalos de êxtases amorosos, e tais períodos são ligados ao relógio e sobrevém o desgaste. Um poeta ama o ato de amar, não está aí nenhuma novidade, um lugar comum até, mas nem  por isso menos verdadeiro. Ama e suspira ao avistar, de um local seguro, a fúria das ondas que investem contra as rochas. Jamais irá banhar-se nestas águas. 
     Então você não quer me ver, mas eu sou suficientemente real. Tanto à meia-noite quanto ao meio-dia, sol a pino. Todavia eu também sou poeta e sei que somos um para o outro matéria de sonhos, o que nos aproxima é uma admiração mútua, uma fome de vida e de estar constantemente soprando as chamas em que nos queimamos mutuamente. 
     Mas até tais chamas não são eternas. Por desatenção a sua fragilidade, por cansaço em ver nossa incapacidade de concretizar um encontro real, por deixarmos que se apaguem sob a chuva fria dos tempos, temos que nos curvar diante da inevitável e até certo ponto previsível morte de um longo e intenso encontro. Mas sentimentos mortos não pedem reverências... Porque na verdade um sonho não vivenciado será sempre uma lembrança um tanto amarga, triste. E será só  a prova do fracasso de quem não o soube possuir...sendo poetas ou não...
   
tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 08/05/2008
Reeditado em 08/05/2008
Código do texto: T981102
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