Um Blues para Elza

 
   O álcool ajuda a esquecer, antes de deprimir – pensou Elza, já na sua quinta dose de uísque barato.
     E olhou ao redor e não viu mais que alguns tipos de olhares vazios e bêbados debruçados sobre seus copos. Breve o bar estaria vazio e, como vinha acontecendo nas últimas noites, o garçom começaria a empilhar as cadeiras ruidosamente sobre as mesas, indicando que chegara a hora de fechar. E Elza teria que sair. E caminharia meio trôpega, esbarrando no que encontrasse pelo caminho. E xingaria por cada tropeço dado. E fuzilaria, com o olhar, o garçom que lhe tentaria ajudar.
     - Merda! – Cuspiu Elza. Esse era o seu xingamento favorito. Saboreava cada letra dessa palavra como um grande “chef” se delicia ao contemplar a sua nova obra culinária: - Merveilleux!
     - Merda! – Repetiu Elza, agora para o sujeito da mesa em frente que lhe dirigia gestos obscenos. Por quem a tomava, afinal? É certo que o bar escolhido não gozava de muito boa reputação, mas, nem por isso, lhe daria o direito de toma-la como uma... vadia! E Elza fechou os olhos e repetiu para si mesma, como quem grava uma lição.
     - Uma vadia...!
     Não era exatamente essa a ideia que tinha dos grandes filmes americanos que houvera visto no passado. Aliás, sempre invejara aquelas mulheres sofridas, tão sofridas quantos os blues que faziam fundo musical para as suas cenas, e que, apesar de todos os desencontros, sofrimentos e desamores, acabavam felizes e sorridentes, e belas...
   Lembrava perfeitamente dos seus cabelos em desalinho, dos seus vestidos, geralmente bem decotados, insistindo em lhes cair dos ombros, e de suas aparências decadentes e expressões desesperadas, ou vazias. Estava bem viva em sua memória a imagem do negro músico ao piano arrancando das teclas as notas mais sofridas do mais sofrido blues. E Elza gostava de se imaginar como uma daquelas mulheres. E sonhava com o final feliz.
    O barulho da cadeira sendo jogada sobre uma das mesas veio tirá-la dos seus pensamentos.
     E Elza saboreou: - Merda!
     E balançou sobre os saltos finos ao levantar.
   Agora estava na rua. Poderia dobrar a próxima esquina e subir as escadas que davam para o seu quarto, mas não estava disposta a ouvir aquela mulher chorando baixinho, como num lamento de morte. Não aguentaria ouvir todos os ruídos, de todas as pessoas, de todos os quartos, que teriam acordado com o mesmo lamento do seu quarto vizinho.  Elza queria algo diferente naquela noite. E seguiu em frente, deixando sua esquina, seu quarto e seus ruídos para trás.
    Ainda não havia atravessado para a próxima calçada quando o viu recostado a um poste de luz. Mãos nos bolsos, cabelos bem penteados, olhar penetrante que lhe transpassava a alma, hipnotizando-a e puxando-a até ele. E Elza não ofereceu resistência. Deixou-se dominar por aquele olhar e caminhou languidamente em sua direção. Sim, era belo! E ele a tomou nos braços e, como se há muito a esperasse, beijou-a longa e avidamente, retirando-lhe o fôlego, deixando-a sem ação, completamente tomada por aquela paixão louca e avassaladora que jamais ousara experimentar. E a possuiu ali mesmo, sob a tênue luz de um poste de rua, tendo as buzinas dos carros e um ou outro latido de cão como fundo musical. E ela estremeceu inteira num último espasmo de prazer quando ele comprimiu seu corpo com mais força, fazendo com que sentisse a temperatura fria do poste em suas costas, contrastando com o calor que vivia sua alma naquele instante. E Elza gemeu e desejou que aquele momento se prolongasse por toda a eternidade, e que, se fosse um sonho, nunca mais acordasse pois, naquele precioso instante, era feliz.
    Demorou para se acostumar à temperatura do corpo voltando ao normal e não quis abrir os olhos. Ao fazê-lo, porém, viu que seu belo cavalheiro havia desaparecido e que somente um ou outro latido de cão preenchia agora o silêncio daquela noite.
     E Elza cuspiu: - Merda! Pois percebera que o zíper do vestido havia arrebentado. E balançou sobre os saltos finos ao voltar para sua esquina, para suas escadas, para o seu quarto. E suspirou fundo, preparando-se para ouvir os ruídos que acompanhavam suas noites há tanto tempo, que já faziam parte dos seus sonhos ou pesadelos quando conseguia dormir. Mas tudo o que conseguia naquele momento era ouvir sua respiração diferente, seu coração batendo num ritmo estranho dentro do peito apertado.
     Dormiu e sonhou com um belo cavalheiro de olhar penetrante que a carregava nos braços e a levava para um mundo iluminado por postes de rua, e de cujas esquinas podia-se escutar canções compostas de buzinas de carros e latidos de cães.
     E durante noites a fio Elza se embriagou nos bares com uísque barato, fuzilou com olhar os garçons que lhe tentaram ajudar ao tropeçar, e xingou os sujeitos de olhares vazios que lhe dirigiam gestos obscenos e atravessou a rua para a calçada onde, certa noite, um belo cavalheiro de olhar penetrante inundou seu corpo de prazer e arrebatou sua alma para sempre.
     E durante noites a fio ela o esperou como louca, e se enroscou naquele poste de luz procurando o seu cheiro, e comprimiu o seu corpo no metal frio buscando o êxtase, os momentos que agora só povoavam a sua lembrança.
     E uma noite então aconteceu. Lá estava ele. Belo, como da primeira vez. Mãos nos bolsos e olhar penetrante, hipnotizando-a novamente.
       E Elza saboreou: - Merveilleux!
    E balançou sobre os saltos finos ao correr ao seu encontro. E pensou que fosse música a buzina do carro que não havia percebido a sua urgência em atravessar tão cega para a outra calçada, para seu belo cavalheiro, para seu final feliz.
   E agora as vozes ao seu redor lembravam os barulhos do bar e os latidos dos cães soavam como um blues. E Elza viu o negro músico ao piano arrancando das teclas as notas mais bonitas do mais bonito blues. E sentiu seus cabelos em desalinho, o vestido decotado a lhe cair dos ombros e pensou em sua aparência tranquila, sorridente e bela sendo carregada pelo seu belo cavalheiro, rodopiando juntos ao som do piano do negro do filme americano, ao som das canções compostas de buzinas de carros e latidos de cães, e um beijo ardente e apaixonado ser encoberto pelo “fade out” do filme onde se lê: The End!
Marise Castro
Enviado por Marise Castro em 13/03/2020
Reeditado em 14/07/2020
Código do texto: T6887187
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