A Relíquia

A vitrine do glorioso Meia Lua Futebol Clube, maior campeão da história da liga Tuntuense de futebol, estava repleta dos muitos troféus que a grande agremiação conquistara. Tinha até um troféu muito bonito de uma competição internacional, quando o Meia Lua derrotou na final ninguém mais ninguém menos que a seleção do Uruguai, em uma partida eletrizante, pelo placar de dois a um (de virada). Mas os olhos de Jaburu, filho do falecido Seu Chico, estavam concentrados num velho par de chuteiras, exibido em lugar de destaque, entre os troféus do título Tuntuense de 1954 e do Torneio Homenagem ao Coronel Altamirano Alcântara de 1967. Aquelas chuteiras de couro, bem velhas e antiquadas, haviam pertencido ao grande artilheiro Maurílio! Não sabe quem foi Maurílio? Maurílio havia sido ídolo do Meia Lua, jogou na seleção brasileira campeã do mundo em 1975, e foi o máximo artilheiro no campeonato italiano – capocannoniere, como dizem por lá. Um crack! Jaburu havia passado os últimos três meses elaborando um complicado plano para roubar – pegar emprestado – aquelas chuteiras, mas o plano ficou tão, tão elaborado, que o rapaz preferiu algo mais fácil e que daria certo do mesmo jeito. Na calada da noite, quando toda Tuntum dormia o sono dos justos, Jaburu entraria na sala de troféus e levaria as chuteiras para casa. Mas, e no dia seguinte? Não dariam falta de tão valiosa relíquia? Não! No dia seguinte, bem cedinho, todos estariam no estádio Altamirano Alcântara, onde se disputaria a final da Liga Tuntuense 1997, entre o próprio Meia Lua e seus eternos rivais, o Montilla F.C.. Justamente por causa desse jogo é que Jaburu levaria as chuteiras. Jaburu, um moço alto, com mais de 2 metros e 15 centímetros de altura, narigudo e com os olhos muito negros, era o atacante do Meia Lua, e queria aquelas chuteiras para usar na finalíssima. Pega ou não pega, pega ou não pega? Jaburu tremia mais que ladrão que tinha sido descoberto, e isso porque ainda nem tinha roubado nada! Mas quando, por fim, pegou as chuteiras, acalmou-se, sentiu-se forte e confiante. Como havia previsto, as chuteiras realmente concediam aquela energia mágica a quem as tivesse em poder. Foi para casa, descansaria o que restava da noite para estar melhor preparado para a grande final que o aguardava. Ledo engano, quando chegou em casa, sua esposa o esperava na porta, com cara de poucos ou nenhum amigo.

-Onde é que você tava numa hora dessas?

-Fui dar um passeio, sabe como fico nervoso antes dessas partidas.

-Passeio onde?

-Por aí, já disse - e Jaburu tentava a todo o custo esconder as chuteiras que mantinha oculta numa sacola.

Jaburu arqueava as sobrancelhas enquanto falava, e a mulher sabia que Jaburu escondia algo, não imaginava que seriam as chuteiras de Maurílio, mais bem pensava que o marido escondia uma infidelidade. Em todo o caso, já era muito tarde e a mulher não pretendia fazer cena de ciúmes, pois ela já havia aprendido, “essas cenas de ciúmes só servem mesmo para estragar a convivência”, e Jaburu era, no geral, não tão mau marido.

-Se você já passeou o suficiente, entre e vamos dormir.

Jaburu aliviou-se com as palavras da mulher, e dormiu um sono agitado e desencontrado. Teve um pesadelo, mas na manhã seguinte, já não se lembrava de nada que havia sonhado, e o único em que pensava era nas chuteiras e na final.

O calor estava forte, o público lotava o Altamirão – apelido carinhoso dado ao estádio – as “Crônicas Tuntuenses” do célebre autor José Raimundo, dizem que mais de trezentas e cinquenta mil pessoas foram ver a partida, tinha gente vinda de Belém do Pará e até de São Paulo. Jaburu tentava e tentava colocar as chuteiras, mas o pé de Maurílio era muito pequeninho, e Jaburu, que calçava 48, não conseguia calçar de jeito nenhum. Mas foi empurrando e forçando, até que o pezão entrou na chuteira, justo a tempo dos times entrarem em campo.

Como numa luta de boxe, o juiz chamou os dois capitães para o centro do campo, onde deu uma breve palestra sobre o que podia e o que não se podia fazer no futebol, depois tocaram o hino de Tuntum e foi dado o apito que permitia o início da partida. Jaburu sabia que aquele seria o seu grande jogo, ficaria para sempre marcado na história do futebol tuntuense, e ficaria mesmo, só não do jeito que ele imaginava. Logo nos primeiros minutos do primeiro tempo, Jaburu disparou desde antes do meio de campo, carregando a bola nos pés, foi driblando os jogadores do Montilla que se colocavam a sua frente, superando um a um, driblou até o goleiro adversário, e entrou com bola e tudo.Gol. Para melhor ilustrar o golaço de Jaburu, usarei alguns dados do livro “Crônicas Tuntuenses”: Jaburu percorreu mais de 350 metros, toda essa distância percorrida em menos de 10 segundos, uma incrível velocidade média de 300000 km/h.

O narrador da partida, o saudoso Celso de Melo Júnior, enquanto gritava o “gooooolllll” acabou estourando uma veia do pescoço e morreu lá mesmo, no estádio.

Indiferente ao trágico acontecimento que ceifou a vida de tão promissor locutor, a torcida gritava o nome de Jaburu em coro, e muitos, nas tribunas, diziam que aquele atacante grandalhão e desajeitado em muito lembrava o mítico Maurílio.

Mas a tristeza veio logo que se iniciou o segundo tempo. Doutor Oscar, presidente da Liga Tuntuense de Futebol, interrompeu o jogo com um disparo de seu revólver 38., dizia que tinha provas de que Jaburu fazia uso de substância proibida que melhorava – e muito – seu desempenho.

-Olhem seus pés - gritou Doutor Oscar, e todos ficaram chocados quando viram Jaburu calçando aquelas que um dia foram as chuteiras com as quais Maurílio fizera três gols numa partida entre a seleção canarinho contra a Argentina (Copa América de 1968, se não me engano). Diante de tal atitude antidesportiva, o título foi dado ao Montilla, e a vergonha caiu sobre o nosso Jaburu: perdeu o campeonato, a mulher o abandonou, foi expulso do futebol para todo o sempre.

Anos mais tarde, nos portões do Maracanã, encontrei o bom e velho Jaburu. Jaburu trabalhava como engraxate e enquanto lustrava minhas botas, disse com voz chorosa, como de criança arrependida só porque foi descoberta:

-Aquilo das chuteiras, aquilo foi tudo mentira! O Doutor Oscar, aqueles dirigentes viviam me perseguindo, eu nunca botei as mãos em chuteira nenhuma!

Enquanto Jaburu jurava sua inocência em cidade muito distante de Tuntum, as chuteiras de Maurílio, valiosa relíquia, repousavam tranquilamente na vitrine do Meia Lua, onde podiam ser vistas, mas nunca tocadas.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 14/05/2020
Reeditado em 23/06/2020
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