A tentação

A tentação

Alexandre Santos*

De longe, o monastério recoleto parecia uma fortaleza. Mergulhado permanentemente em silêncio, distante uns cem metros do vizinho mais próximo, era cercado por muros altos guarnecidos por uma espessa barreira de arbustos e buganvílias floridas. Era um ambiente de completa entrega a Deus e, talvez, por isso mesmo, alvo da vigilância de muitos olhares e, também, de ataques vindos deste e de outros mundos. Pelo menos, isso era o que todos sentiam. Os mais antigos diziam que, desde sempre, procurando conspurcar a obra de Deus, aprendizes, asseclas e, até mesmo, demônios rondavam a casa, ameaçando, colocando à prova e tentando a vocação dos residentes e visitantes. Eles tinham razão. Se as velhas paredes do convento, testemunhas silentes de coisas do arco de todas as velhas, pudessem revelar os segredos que involuntariamente lhes foram confiados séculos a fio por pecadores de todos os escalões, o destino de muitos talvez tivesse sido diferente. Aliás, se, ao invés de carregados ao túmulo pela extensa linhagem de padres-confessores, segredos e pecados cochichados à sorrelfa tivessem sido revelados, muitos mistérios ganhariam explicação, justificando gestos aparentemente insanos, como a destruição de vocações consideradas pétreas ou o impulso que levara um antigo superior ao suicídio.

Entre as tentações mais notórias e frequentes anotadas no grosso livro diário mantido pela prelazia, estava a periódica silhueta feminina que, especialmente em noites de lua cheia, perambulava pelo casarão vizinho, se deixando ver através das cortinas das vastas janelas, ondulando encantos numa espécie de sex-show, despertando libido em quem devia mortificá-lo, abalando e, mesmo, destruindo vocações aparentemente sólidas. Os que viram a aparição pelos últimos 35 anos, lembravam da sombra de mulher que emergia da janela superior do casarão ao lado do monastério para seduzir noviços com apelos sexuais irresistíveis, tendo desencaminhado, pelo menos, quinze jovens diáconos, jogando-os no caminho da perdição.

Os moradores mais recentes não sabiam, mas a mureta erguida a poucas décadas sobre a muralha e a vegetação arbustiva plantada a seu pé tinham o propósito de tapar a visão do janelão que servia de palco para a aparição sensual que perturbava a tranquilidade do convento. A medida, no entanto, jamais surtiu o efeito desejado, pois, em todas as épocas, talvez sem acreditar na magia das visões, esquecidos dos ensinamentos e mandamentos de Deus neles inculcados desde a mais tenra idade, quando eram recrutados em orfanatos ou escolas da Ordem por todo o País, seminaristas galgavam escadarias e árvores em busca de posições das quais pudessem esquadrinhar a vegetação por sobre a muralha em busca de brechas através das quais fosse possível vigiar o casarão assombrado e, quem sabe, ver a mulher encantada. Não foram poucos aqueles que viram a aparição e sentiram o sangue ferver em franco convite ao pecado. E, por conta do feitiço, nas noites de luar, com ou sem aparição, o pecado grassava solto, perturbando o rebanho cultivado com tanto carinho pela congregação. Aliás, até quando o vulto não aparecia, embalados por uma inexplicável onda de luxúria pecaminosa, muitos seminaristas rendiam tributo a Onã e outros, desesperados e, sem dúvida, despreparados para o futuro que os esperava, já a beira do abismo e do caminho-sem-volta, chegavam a usar o lado mulher que sobressaía em alguns.

Ninguém no convento escapava da tentação. Até mesmo os pequeninos, que, ainda nos primeiros anos do internato - quando mal aprendiam a unir as mãozinhas espalmadas para compor a imagem associada às orações que declamavam automaticamente sem a menor compreensão da profundidade das coisas de Deus -, eram perturbados. Inicialmente pelo pavor das tentações (que, segundo os mentores diziam, ameaçavam a paz da Casa de Deus) e depois pela curiosidade de conhecê-las [as tentações] (e saber porque, de bom grado, muitos adultos aceitavam trocar a candura da Casa de Deus pelo mundo profano dos homens). Havia, portanto, uma séria razão para os terços e novenas que a comunidade rezava com fervor, clamando a proteção de Deus contra as tentações da carne e pedindo forças para enfrentar o demônio encastelado na torre vizinha.

Embora as artimanhas mundanas do casarão vizinho fossem um assunto quase proibido entre os agostinianos, boatos que circulavam à boca miúda sobre as aparições tentadoras transbordaram e correram a província, terminando por alcançar toda a Ordem e converter o convento em sinônimo de tentação e risco às vocações. E, assim, em poucos anos, sem que qualquer recoleto admitisse, o clero tinha o convento agostiniano como uma espécie de Capri infestada de sereias demoníacas, capazes de enfeitiçar e destruir homens, até mesmo aqueles cuja fé parecia inabalável.

Este foi o pequeno universo para o qual o bispo D. George Armeno despachou João Crisóstomo, um jovem padre, com pouco mais de vinte anos, com a missão de, conforme dizia o decreto diocesano, "investigar a natureza das assombrações e, se for o caso, dar início ao exorcismo capaz de purgar o convento agostiniano das tentações que há tempos desvirtuam o rebanho nele recolhido". Os que não conheciam D. George Armeno ou o padre João Crisóstomo poderiam, até, pensar tratar-se de alguma espécie de perseguição ou punição. Mas, não era disso. Pelo contrário. A escolha de João Crisóstomo - brilhante jovem mal saído da puberdade e dos bancos da prestigiada Escola Agostiniana de Teologia e que, em pouco tempo de atividade junto ao bispado, conquistara prestígio pela capacidade intelectual, autoridade moral e firmeza da fé - mais do que demonstração de carinho e de confiança, fora fruto de cuidadosa avaliação, pois, no entender de D. George, se o equilíbrio, a devoção e o discernimento de João Crisóstomo não conseguissem vencer o mal que atanazava os agostinianos, nada mais o faria.

E, armado apenas com a crença em Deus e a força da Bíblia, lá foi João Crisóstomo enfrentar os demônios e as artimanhas mundanas que abalavam a fé e arrasavam a vocação de muitos que procuravam ou desafiavam as sombras abrigadas no casarão vizinho ao convento recoleto.

Os primeiros dias no monastério foram de estudos. Das conversas informais com o clero, João Crisóstomo apreendeu muita coisa, inclusive que a visão presencial da bruxa não era necessária para ameaçar a fé de alguns, bastando o noticiário sobre o assunto, pois, no embalo dos mexericos sobre o panorama sensual proporcionado pela casa vizinha, o feitiço estava por toda parte. De fato, agindo desde longe, especialmente sobre os mais susceptíveis, sob forma de mulher, o demônio aparecia em sonhos eróticos, em avant-première daquilo que poderia ser visto por aqueles que desobedecessem ordens superiores e arriscassem uma espiadinha através da vegetação divisória, para seduzir noviços, solapando e corroendo a fé e a virtude necessárias a um homem do exército de Deus.

Só quando julgou estar suficientemente informado sobre os perigos que enfrentaria, João Crisóstomo resolveu enfrentar a bruxa. De certa forma, sem jamais ter sido atanazado sequer em sonhos eróticos como muitos colegas (o que, de certa forma, atestava a firmeza da sua fé), ele queria testar a si próprio 'em campo' para verificar até que ponto estava sujeito ao poder demoníaco da tentação. Se fraquejasse à provação estaria provado não estar pronto para o mundo de Deus e não lhe restaria caminho senão a vala dos pecadores. Se, no entanto, resistisse às tentações estaria pronto para prosseguir na missão que lhe fora confiada pelo bispo George Armeno. Assim, desdenhando as lições de Ulisses - que, conforme conta a Odisseia, ao passar por Capri, disposto a conhecer o canto das sereias, pediu para ser amarrado ao mastro no navio, orientando seus homens a não obedecer a qualquer das suas ordens -, o jovem padre decidira enfrentar a tentação sem qualquer precaução.

Depois do Angelus, após reforçar o espírito com jejum e orações, João Crisóstomo enfurnou-se no campanário da capela, onde por três dias e três noites, praticamente imóvel, manteve o olhar no janelão que servia de palco e moldura para as aparições. Finalmente, no começo da terceira noite, quebrando a monotonia da paisagem escura, o vão encheu-se de uma luz embaçada e, sem qualquer outro aviso, um vulto feminino apareceu, atraindo a atenção de muita gente. Confirmando relatos, uma cortina levíssima encobria o corpo de mulher, dando um toque fantasmagórico à silhueta, que parecia dançar na semiescuridão. Naquele instante, em diferentes lugares do convento, acesas por expectativas e sonhos jamais admitidos, ereções proibidas materializaram a vitória do pecado sobre a virtude, denunciando vocações religiosas frágeis e, mesmo, inexistentes.

Daquela vez, a encenação sensual demorou cerca de meia hora, tempo mais que suficiente para enfeitiçar a maioria dos expectadores. Como esperado desde sempre por D. George Armeno, do alto da fortaleza moral que construíra ao longo da vida, o jovem padre encarapitado no alto da torre do sino não se abalou. Na realidade, ao contrário daqueles que se deleitavam com o espetáculo, de repente, tomado por um impulso inesperado, decidiu partir para o confronto com a assombração e, ato contínuo, vencendo vários degraus a cada passo, João Crisóstomo desceu a torre em segundos para, desprezando alertas e avisos, correr os cem metros que separavam o convento da casa mal assombrada.

A medida que o portão encimado pela placa 'Villa de Circe' se aproximava, sem perder velocidade, o jovem padre mais se imbuía da responsabilidade de derrotar o mal, remetendo-o para profundezas das quais [ele, o mal] jamais deveria ter saído. E, sem pedir autorização ou urdir planos, deixando-se levar pela mão de Deus ao ritmo da Pai Nosso que não parava de rezar, João Crisóstomo invadiu o quintal e cruzou o jardim mal cuidado em direção ao portal de acesso ao casarão. Se dependesse da vontade do padre, adentraria a casa e o confronto aconteceria em instantes. Mas, não foi o que aconteceu, pois, logo percebida, a incursão interrompeu a movimentação no interior da casa.

De fato, de repente, como acolhida amorosa, enquanto uma lâmpada acendia para jogar luz na varanda às escuras, a porta principal escancarava em moto próprio, dando passagem a uma velha - uma mulher puída pela vida, que, sem sucesso, tentava esconder a camisola com um hobbi-de-chambre mal-fechado, com frestas pelas quais, se quisessem, olhares curiosos poderiam mergulhar à vontade. Não era aquilo que, pronto para enfrentar as piores coisas, João Crisóstomo esperava. Uma velha. Uma simples velha. Mesmo alimentando fio de esperança de que, na realidade, antes de ser o que parecia, a tal velha fosse uma transmutação do demônio que buscava, o jovem padre não conseguiu esconder a decepção de ser privado da chance de fazer aquilo para o qual fora preparado por longos anos.

O ar de surpresa e decepção do penetra foi imediatamente percebido pela mulher, que, em ilação desconectada das razões do arrebatamento de João Crisóstomo, atribuiu a mudança de ânimo [dele] à desilusão estética (seguramente, ele esperava alguém mais bonita e gostosa, a velha pensou divertida) e, como das outras invasões da Villa de Circe por fedelhos apaixonados pela sombra sensual projetada no janelão por ela mesmo desde a adolescência há mais de 60 anos, não conteve a expressão de vitória, transformada em sorriso à medida que alistava mais um tolo entre os santos que se achavam homens de Deus, mas, empurrados pelos próprios pecados, invadiam a sua casa, querendo fazer o mesmo com o corpo por eles imaginado.

- Bem vindo ao mundo de Circe, meu jovem. Em que posso servi-lo?

E, diante da velha, João Crisóstomo viu o demônio, passando a compreender a natureza de alguns pecados, inclusive daqueles que levaram muitos superiores à renúncia e, mesmo, ao suicídio.

(*) Alexandre Santos é presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural